‘O Brasil é um país em franca decadência”, me disse ao telefone um alto funcionário do governo brasileiro, diplomata de carreira. Foi no fim do ano passado. Tenho esse diplomata em alta consideração. E a frase me doeu, ficou reverberando dentro de mim.
Tenho toda uma vida profissional investida no Brasil e na sua projeção internacional. Tudo o que faço, de uma maneira ou de outra, diz respeito a nosso país. Mesmo agora que sou um funcionário internacional, que não representa o país no banco aqui em Xangai, todas as minhas atividades remontam, em última análise, à ideia central de que o Brasil é uma grande nação, destinada a deixar sua marca na história e no mundo.
Ilusão? Creio que não. Mas é, sem dúvida, muito difícil sustentar essa crença hoje. Lembrei-me da frase do diplomata por causa de algo estarrecedor que aconteceu na semana passada: a sentença de um certo juiz, condenando o ex-presidente Lula a mais de nove anos de prisão. Com todos os absurdos que ocorrem atualmente no Brasil, é difícil encontrar um documento que sintetize de forma tão perfeita o nosso quadro de decadência moral, intelectual, profissional e política. O juiz bateu recordes de desfaçatez.
Um certo juiz. Por que não dizer o seu nome? Explico. Conta Nelson Rodrigues que na antiga imprensa carioca havia um editor que era contra, simplesmente contra o ponto parágrafo. Dizia que o ponto parágrafo era um espaço desperdiçado e perdido para sempre. Pois bem, o nome do juiz seria outro espaço desperdiçado e perdido para sempre. E de qualquer maneira: o seu nome não entra na minha coluna nem a tiro, como não entra palavrão em casa de família.
Bem, casa de família já é exagero. Reconheço que figuras infames já passaram por esta coluna. Mas há limites, leitor, há limites! A referida sentença está coberta de barbaridades e absurdos. Trata-se de uma selvageria pura e simples. Dou um ou dois exemplos, entre muitos que poderia dar se o espaço permitisse.
O ex-presidente foi condenado em primeira instância por crime de corrupção passiva. Ora, para caracterizar tal crime, parece que há pelo menos dois requisitos indispensáveis. Primeiro, comprovar o recebimento pelo corrupto de um favor ou benefício. No caso, o tríplex em Guarujá. Segundo, comprovar que o acusado valeu-se de um cargo para prestar alguma contrapartida ao corruptor, no caso a OAS.
Quanto ao primeiro aspecto, o juiz reconhece que não tem provas de que o tríplex pertence ou tenha pertencido a Lula. Alega, entretanto, que o ex-presidente era “proprietário de fato”. O juiz comprova a “propriedade de fato”? Comprovou-se o uso frequente do imóvel por Lula e seus familiares? Não. O que se alega simplesmente são uma ou duas visitas de Lula e dona Marisa ao tríplex.
Uma, talvez duas visitas. Parece caricatura, mas não é.
Quanto ao segundo aspecto, como o juiz comprova a contrapartida? Não precisa comprovar. A sentença alega: “Basta para a configuração que os pagamentos sejam realizados em razão do cargo ainda que em troca de atos de ofício indeterminados, a serem praticados assim que as oportunidades apareçam”.
Atos de ofício indeterminados. A citação é literal.
É isso que passa por justiça no Brasil hoje?
*Paulo Nogueira Batista Jr. é vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, sediado em Xangai, mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal
**Artigo publicado originalmente em O Globo.