A ligação entre dinheiro e fake news: o caso Brasil Paralelo

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A esta altura, é provável que todos os brasileiros que usam a internet já tenham sido impactados, ao menos uma vez, por anúncios de conteúdos que parecem reveladores e instigantes mas, na verdade, integram uma gigantesca operação de revisionismo histórico (ou seja, tentam reescrever a história apagando fatos e os substituindo por versões distorcidas) no país. A Brasil Paralelo é uma produtora de conteúdo com interesse direto em interferir na política nacional com suas distorções e mentiras — que alimentam discursos de ódio e perseguição a minorias, servindo à pauta de Bolsonaro. Segundo o Relatório de Transparência de Assuntos Políticos, lançado pelo Google na quinta-feira (23), a Brasil Paralelo foi a maior anunciante de propaganda política nas plataformas do Google no país. Entender esse caso nos mostra como, infelizmente, dinheiro e fake news estão muito mais ligados do que se imagina.

Localizada no Rio Grande do Sul, a produtora investiu R$ 368 mil para impulsionar 647 conteúdos desde novembro do ano passado, data do início do levantamento. Conteúdo impulsionado (ou pago) é aquele que surge na tela como sugestão após você assistir a um vídeo no YouTube, ou como resposta a alguma busca sua no Google. É a primeira vez que o Google mapeia todos os anúncios de suas plataformas (incluindo o YouTube) que mencionam partidos ou candidatos — e o dinheiro desembolsado por eles.

O anúncio mais caro, como mostra a reportagem publicada no site Bloomberg Línea, custou entre R$ 35 mil e R$ 40 mil e é um vídeo com um pedido de assinatura dos serviços da Brasil Paralelo em que o narrador acusa a “mídia” de esconder a “verdade” sobre a causa ambiental da Amazônia e sobre a situação dos indígenas na região. O vídeo foi exibido 7 milhões de vezes e foi o segundo anúncio mais caro das plataformas do Google em gastos com impulsionamento, neste levantamento.

Os R$ 368 mil investidos em publicidade com viés político não levam em conta outros anúncios feitos pela Brasil Paralelo (e não categorizados pela anunciante como políticos) e, mesmo assim, colocam a produtora bem à frente dos demais anunciantes dessa categoria. O segundo colocado na lista é o PSDB, que gastou R$ 208 mil para impulsionar 27 anúncios no mesmo período analisado. Em terceiro vem o diretório do PSB no Rio de Janeiro, com R$ 186 mil em 368 anúncios. 

Ainda segundo o relatório, o valor total de gastos com propaganda política no Google foi de R$ 1,1 milhão em 1.696 anúncios exibidos tanto no Google quanto no YouTube. Ou seja, um terço de toda a propaganda política veiculada nessas plataformas era de conteúdos da Brasil Paralelo. A ferramenta do Google é interativa e é possível consultar os anúncios da empresa em tempo real.

Com boas “sacadas” publicitárias, os anúncios da produtora sempre oferecem algum conteúdo gratuito que serve de amostra para a venda de planos de acesso à plataforma de vídeos (uma espécie de Netflix fundamentalista) nos valores de R$ 19 ou R$ 49 mensais. A estratégia de marketing é profissional, agressiva e mutante (com uso intenso de promoções, teasers e “iscas”). Até poucos meses atrás, os planos tinham nomes como “Mecenas” ou “Patriota”. E tem funcionado. Desde 2016, quando iniciou sua operação, o número de assinantes da Brasil Paralelo vem crescendo e hoje é de cerca de 300 mil.

E não é a primeira vez que a produtora mostra ter muito mais “bala” para investir em mídia digital do que partidos políticos. Essa distorção chama atenção porque tais conteúdos levam adiante mensagens revisionistas, que se baseiam em uma suposta liberdade de investigação para espalhar mentiras e desinformação na tentativa de reescrever a história social e política do país.

O ímpeto por publicidade desproporcionalmente distribuída nos meios digitais é antigo. Em 2020, quando o Facebook passou a divulgar quem eram seus maiores anunciantes de propaganda política, a Brasil Paralelo apareceu como recordista de gastos, superando as de todos os demais candidatos daquela eleição, como mostrou uma longa reportagem publicada na revista Piauí. De agosto daquele ano a maio de 2021, a produtora tinha desembolsado R$ 3,3 milhões de reais em propaganda no Facebook.

A Brasil Paralelo é uma iniciativa robusta, bem estruturada e em franca expansão, que dá munição e retroalimenta sistematicamente a rede de fake news e desinformação nas redes sociais. Por sua vez, as plataformas que abrigam estes conteúdos pouco ou nada têm feito para coibir esses abusos. Apesar de terem sido firmado acordos entre as plataformas e o TSE, por exemplo, para coibir alguns tipos de conteúdo mentiroso atacando o processo eleitoral, a reação ainda está muito aquém da gravidade do que estamos assistindo. Quem ganha com isso é a mentira, é o bolsonarismo.

Em um desses anúncios, veiculado no mês passado, o vídeo que a Brasil Paralelo pagou para o Google sugerir automaticamente a seus usuário traz, com uma narração em tom retumbante (para dar aquele “tom” de denúncia) a repetição de uma fake news, antiga e já desmentida, de que o PT teria supostamente pagado R$ 200 milhões para Marcos Valério “não falar no nome de Lula e poupar o presidente na investigação do mensalão”. Novamente, isca, manipulação, mentira.

Onde há fumaça…

Sabe aquela sensação de que algo errado não está certo? Pois então. Em tese, qualquer produtora de conteúdo pode pagar o quanto quiser para fazer propaganda de seus produtos. Também em tese, não há nada errado em fazer investigações ou “revelações” sobre qualquer tema. A coisa começa a ficar estranha quando o que se propaga é revisionismo histórico e desinformação com intuito nitidamente político. E fica pior quando há perseguição (online e judicial) às pessoas que denunciam essa estratégia. 

Ao longo do ano passado, professores e estudantes de história que tinham publicado em redes sociais desmentidos e correções aos conteúdos da Brasil Paralelo começaram a receber notificações extra-judiciais exigindo “retratação e direito de resposta”. O site The Intercept conversou com algumas dessas vítimas de ameaças e desvelou uma grande ofensiva judicial da produtora para tentar calar seus críticos e reescrever a própria história. No mês passado, entrevistou Mayara Balestro, historiadora que foi ameaçada e perseguida por desenvolver uma pesquisa sobre a Brasil Paralelo. 

A historiadora foi atacada (teve fotos e dados pessoais expostos pelo empresário bolsonarista e membro do conselho da Brasil Paralelo, Leandro Ruschel) no dia em que defendeu sua dissertação de mestrado intitulada “Agenda conservadora, ultraliberalismo e ‘guerra cultural’: ‘Brasil Paralelo’ e a hegemonia das direitas no Brasil contemporâneo”. Antes, já havia se tornado alvo da produtora por ser coautora de um e-book chamado “Nova direita, bolsonarismo e fascismo: reflexões sobre o Brasil contemporâneo”, no qual expunha as ligações entre uns e o outro. 

Ela, assim como todos os professores e estudiosos perseguidos, também apontou as inconsistências formais e o viés ideológico dos conteúdos. Além de vários problemas historiográficos, ela diz, há também uma “tentativa de apagar e silenciar minorias, a participação das mulheres, dos negros, e tentar reescrever essa história vista de cima”.

Por mais que neguem, e que ataquem quem diz o contrário, os temas divulgados pela Brasil Paralelo são estritamente alinhados com o que há de mais obscurantista, fundamentalista e negacionista no bolsonarismo, como a desmoralização do STF (há uma “série” chamada “Os 11 Supremos”, que desanca a Corte de cima a baixo), o desrespeito às mulheres, o apagamento da luta antirracista e dos povos indígenas etc.  A lista é longa. 

À Piauí, um dos fundadores da produtora, Henrique Viana, disse que a linha editorial não é alinhada a Bolsonaro: “Somos conservadores. O que a gente quer é resgatar os valores e o sentimento do coração dos brasileiros. Não somos bolsonaristas”.

A estratégia da Brasil Paralelo é sempre negar ligação com Bolsonaro enquanto, na prática, se alia aos setores mais retrógrados do empresariado alinhados a ele (como o Instituto Mises) para seguir difundindo sua visão mentirosa e distorcida da história. Reescrever ou apagar o passado é a fórmula usada por quem não quer um futuro diferente para o país.  

Ser politicamente conservador, ou seja, ser contrário a políticas públicas que melhorem a vida dos mais pobres, é uma escolha pessoal. Vivemos em uma democracia e cada indivíduo tem o direito de escolher o futuro que prefere para o seu país. Promover a difusão em massa de revisionismo histórico, fake news e desinformação é um atentado à própria democracia. Além de estarmos atentos, é preciso apontar a responsabilidade (ainda que por omissão) das plataformas e redes sociais tanto ao lucrar com contas falsas como com anúncios que em última instância atentam contra as comunidades que elas tanto dizem querer preservar.