Tumusiime Rhoda Peace, representante da Comissão da União Africana para Economia Rural e Agricultura, conversou com o Instituto Lula durante o seminário “Novas abordagens unificadas para erradicar a fome na África até 2025″, que foi realizado entre 30 de junho e 1º de julho, na Etiópia.
Rhoda Peace falou sobre o trabalho do CAADP (Programa Compreensivo para o Desenvolvimento Agrícola na África) no combate à fome na África e também aborda a questão do conflito entre a doação de alimentos e os incentivos à produção agrícola local. Também destacou o exemplo brasileiro no combate à fome, “a África tem muito a aprender do Brasil porque o Brasil avançou muito no atendimento às pessoas, particularmente em assegurar acesso à comida”.
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Leia abaixo a transcrição completa da entrevista:
Instituto Lula: Senhora Rhoda, eu gostaria que a senhora nos falasse sobre como o CAADP pode ajudar o combate à fome e o desenvolvimento agrícola?
Rhoda Peace: O CAADP é um arcabouço continental que foi implementado pelos chefes de Estado e de governo e que tem princípios que visam orientar os países para que estes possam orientar, direcionar a implementação e o investimento na agricultura. Portanto, o CAADP é de fato nosso arcabouço maior e verifica-se que os países que se saíram melhor foram aqueles comprometidos com o CAADP. O CAADP é tão fundamental para nós que, se o usamos bem, verificamos que podemos conquistar segurança alimentar e nutricional. Mas há desafios, claro. Há desafios para a implementação desse arcabouço continental porque, como se sabe, na África há limitações. Há diversas limitações. Os recursos estão espalhados pelos diferentes setores, e esses recursos não são suficientes para resolver todas as questões, resolver a infraestrutura. Na verdade, o CAADP é impactado negativamente pela ausência de integração continental porque os países são tão estruturados e cada vez menores que não constituem um mercado suficientemente grande. Portanto, se a África conseguir abrir-se internamente, conseguiremos ter um arcabouço comercial continental. Assim o CAADP teria uma boa base. Uma vez que se produza e se processe, criar-se-á um mercado dentro da África. Portanto, o CAADP é de mportância capital e eu acredito que os chefes de Estado tiveram uma ótima ideia quando propuseram essa base fundamental para a erradicação da pobreza.
Instituto Lula: Como são implementados os projetos nos países, uma vez que o CAADP é um plano pan-africano e cada país possui suas próprias características? Como se vai do geral ao específico na implementação dos programas?
Rhoda Peace: Em nível continental, nós fornecemos os princípios. Fornecemos o marco diretor. Em nível de país, as pessoas de cada país, em particular os atores não estatais, os parceiros que são sempre envolvidos no desenvolvimento da agricultura, e os vários ministérios reúnem-se em uma mesa redonda. E não é tão somente o ministério da agricultura que cuida da agricultura porque, a menos que os demais ministérios estejam envolvidos, não há como obter tal desenvolvimento. Portanto, o CAADP, em nível de país, agrupa todos os diferentes players. Eles vêm, estabelecem suas prioridades e essas prioridades orientam a implementação e o investimento. Isso continua com as discussões das mesas redondas, além de convites a investidores estrangeiros. Buscamos ver se há pessoas, do Brasil, por exemplo, que possam vir a estes países e formar parcerias com os atores nacionais para investir. Cada país se organiza em nível nacional Posteriormente, isso é disseminado e passa a abarcar uma região e, por fim, é disseminado por todo o continente. O CAADP está organizado dessa maneira.
Instituto Lula: E quantos países atualmente já estão investindo 10% do orçamento doméstico em agricultura?
Rhoda Peace: Nacionalmente, a agricultura é uma prioridade para muitos países. E, desde que o CAADP foi implantado, verificamos um crescimento dos investimentos. Verificamos uma percepção de que a agricultura importa. Assim, os países passaram a aumentar seus esforços para aumentar o fluxo de recursos para a agricultura. Como resultado, muitos países avançaram e dobraram seus investimentos, a alocação orçamentária para o setor agrícola. Quando começamos, o investimento estava em baixa – 1%, 2%. Hoje verificamos que de 1%, muitos foram para 2%, de dois por cento, outros subiram para 4%, aqueles que estavam em 5%, hoje estão em dez, aqueles que estavam em dez, passaram para vinte por cento. Portanto, verificamos uma sólida tendência de crescimento, o que implicará em que os países continuem a envidar esforços e a investir seus recursos na agricultura. É por isso que o CAADP vem atraindo todos os governos, todos os recursos e, especialmente, mobilizando todos os parceiros para o âmbito do CAADP.
Instituto Lula: E os desafios hoje, para a África de modo geral, estão mais relacionados à falta de dinheiro para investir ou à carência de pessoas treinadas, de formação, ou ambos, ou há outros desafios?
Rhoda Peace: Eu penso que os desafios são mais do que isso. Primeiro, nós temos uma população em crescimento. O crescimento populacional é, sem dúvida, um desafio para nós. E para acompanharmos o desafio do crescimento populacional, temos de investir mais, temos de criar empregos, e vemos a agricultura como fundamental nesse processo. É possível que haja recursos disponíveis, mas que estes não sejam suficientes. Mas a agricultura requer tecnologia, que é fundamental. E capacitação também é muito importante. Você pode ter a tecnologia, mas não dispor de capacitação para usar essa tecnologia. Além disso, como por mim indicado, uma vez que os investimentos sejam feitos, é necessário atingir o mercado. Portanto, a menos que estejamos seguros acerca do mercado, não conseguiremos investimentos reais. Portanto, os desafios são muito amplos e muito variados.
Instituto Lula: Hoje o Sr. Lula disse que não é possível acabar com a fome sem um compromisso politico e sem incluir os pobres no orçamento nacional. A senhora concorda com isso?
Rhoda Peace: Ah, com referência ao Lula, sim, concordo plenamente. Acima de tudo, a África e o Brasil têm um relacionamento histórico e cultural. E a África tem muito a aprender do Brasil porque o Brasil avançou muito no atendimento às pessoas, particularmente em assegurar acesso à comida. Portanto, a África precisa aprender com o Brasil. O que o presidente Lula disse é mesmo bastante aplicável à África. Eu concordo com ele. E acho que esse é o caminho a seguir.
Instituto Lula: Há projetos sociais brasileiros sendo implementados aqui, tais como o programa que compra comida dos pequenos fazendeiros? A senhora está a par desses…
Rhoda Peace: Sim, estou inteiramente a par desses projetos. E dispomos de alguns. Por exemplo, o PMA compra muitos alimentos da África de pequenos fazendeiros. Mas organizar pequenos agricultores não é fácil. Leva tempo organizá-los, integrar sistemas mundiais de distribuição e, enfim, produzir em escala. Temos inúmeros desses programas. Esse é apenas um deles. Mas, além disso, temos pequenos agricultores que vendem alimentos diretamente aos países e estes, por sua vez, atendem as necessidades das populações forçadas a se deslocar internamente. Na África, mais de 70% da agricultura é realizada por pequenos agricultores. Há muitos pequenos fazendeiros que estão bastante organizados nesse contexto.
Instituto Lula: E a senhora julga que seja importante que a África aumente a agricultura de larga escala também?
Rhoda Peace: A agricultura da África é baseada em pequenas propriedades. No tocante à média e larga escala, onde isso for possível é ótimo, desde que esse tipo de grande agricultura comercial esteja vinculado aos pequenos fazendeiros. Eu acredito que isso é muito importante porque a agricultura de pequena escala pode beneficiar-se dos grandes fazendeiros em termos de conhecimento do mercado, além de poderem vender seu excedente, possivelmente para processamento, aos grandes fazendeiros. E ainda para aprender sobre padrões porque os pequenos fazendeiros têm muitos desafios com relação à manutenção de qualidade e padrões.
Instituto Lula: A senhora acredita que a fome possa ser erradicada da África até 2025?
Rhoda Peace: Esse prazo é muito distante. Mas, sim, é possível. Basta dobrar a produção na África, é muito simples. Dobra-se a produção e, com isso, eliminamos a fome.
Instituto Lula: O que a senhora pensa sobre o conflito entre doações e produção de alimentos, já que a ajuda alimentar é necessária mas, por outro lado, ela às vezes prejudica o desenvolvimento da agricultura local. Fale um pouco sobre essa questão.
Rhoda Peace: Muito bem. Como sabemos, a África recebe ajuda em alimentos, mas essa ajuda que recebemos destina-se principalmente às populações que não estão em seus próprios ambientes por causa de conflitos internos aos Estados ou entre Estados, guerras e assim por diante. Nesses casos as pessoas deslocam-se de seus locais de sustento e buscam assentamento em outro lugar. Nesses casos fornece-se ajuda alimentar. Nessas circunstâncias a doação de alimentos é aceitável. Mas onde as pessoas já estão assentadas, eu não acredito que a ajuda alimentar seja importante porque o que realmente queremos é empoderar as comunidades em seus locais para que produzam mais. É por isso que dizemos que necessitamos um aperto de mãos em vez de apenas esmolas. Nós não queremos esmolas. Nós queremos ser empoderados Queremos que as comunidades sejam empoderadas para que possam produzir para seu sustento. Na verdade, mesmo na África, somos capazes de prover alimentos mas, porque não desenvolvemos a infraestrutura interna do continente, o comércio na África ainda não é fácil. Enquanto alguns países têm superávits, outros não têm o suficiente. Portanto, preferiríamos ver os alimentos movendo-se dentro da África em vez de recebermos alimentos na forma de doações.
Instituto Lula: É isso. Mrs. Rhoda, muito obrigada.
O Instituto Lula publicou uma série de seis vídeos com entrevistas de personalidades que participaram do encontro. A série mostrará entrevistas sobre o combate à fome na África com:
1. Marcio Porto, chefe da Secretaria de Relações Internacionais da Embrapa
2. Tereza Campello, Ministra do Desenvolvimento Social
3. João Bosco Monte, professor da Universidade de Fortaleza
4. Afonso Pedro Canga, Ministro de Agricultura de Angola
5. Tumusiime Rhoda Peace, representante da Comissão da União Africana (AUC) para Economia Rural e Agricultura
6. Mahaman Elhadji Ousmane, Ministro do Desenvolvimento e da Pecuária do Níger
Saiba mais sobre o encontro “Novas abordagens unificadas para erradicar a fome na África até 2025? no hotsite que o Instituto Lula preparou sobre o seminário: africa.institutolula.org