Natalia da Luz, integrante do Conselho África do Instituto Lula, publicou em seu site “Por Dentro da África” mais uma matéria exclusiva com o professor Alberto da Costa e Silva, um dos mais importantes historiadores brasileiros e membro da Academia Brasileira de Letras. Costa e Silva, que também é membro do nosso Conselho África, fala sobre os avanços da liberdade no continente africano.
Veja a matéria:
Rio – Há 52 anos, a Organização da Unidade Africana foi criada durante um período cercado pelo sentimento de liberdade, de otimismo. Uma onda de libertação tomava o continente africano, que hoje cresce sobre avanços e fragilidades. Em 25 de maio, o Dia da África serve também para relembrar a história e a necessidade do combate às ideias falsas sobre o continente.
No período de pós-independência, a África foi tomada por um pessimismo porque os africanos achavam que a independência resolveria tudo; na verdade, ela resolvia apenas alguns problemas políticos, como ressaltou, em entrevista exclusiva ao Por dentro da África, Alberto da Costa e Silva. Conhecido como o maior africanólogo de língua portuguesa, ele também lembra que quase todos esses países sofreram com o neocolonialismo interno.
– Eles foram recolonizados pela própria gente. Cada vez que eu ia a Gana, eu encontrava um Nkruma diferente. Desde o seu início, cheio de entusiasmo e visão de futuro, até o seu fim com o culto da personalidade. Quando você andava por Acra, havia fotos de Nkruma por todo canto, e isso já era um mau sinal – falou Costa e Silva, em relação ao primeiro presidente de Gana.
Kwame Nkrumah foi um líder político africano, um dos fundadores do Pan-Africanismo, e primeiro-ministro entre 1957 e 1960 e presidente de Gana, de 1960 a 1966.
– Gana foi um dos primeiros países a se descolonizar sob uma liderança muito efetiva e muito capaz de Nkruma e de seus companheiros. Eles tinham uma excelente formação e comprometimento. Tinham essa visão da África, de que era possível fazer os Estados Unidos Africanos – lembra o autor de “Um Rio Chamado Atlântico”.
Para relembrar a ideia da criação dos Estados Unidos da África, vale citar a filosofia do senegalês Cheikh Anta Diop, que defendia a união entre os países do continente habitada majoritariamente por negros. A ideia de Diop não é um convite para a volta à configuração geográfica dos impérios e reinos que neste existiram, mas sim um apelo para uma construção geográfica contrária à imposta pela superioridade de força bélica de certos países ocidentais na Conferência de Berlim de 1884/1885.
– Seria impossível fazer um único país da África Subsaariana, mas talvez fosse possível transformar toda a África em 4, 5 grandes países. O problema foi que a fragmentação significou multiplicar alfândegas, exércitos, forças armadas… A Conferência de Berlim (em 1885) fez a divisão entre os países europeus. A França, por exemplo, manteve os países colonizados em blocos, o que poderia fazer com que a África Ocidental se tornasse um país, mas cada líder queria mandar na sua terra e na sua gente. Então, houve uma segunda divisão feita pelos próprios africanos. Isso fez naufragar os sonhos pan-africanistas – pontua Costa e Silva.
A independência econômica
O movimento de independência, de libertação, que tomou a África em 1960, não levou à liberdade por inteiro para a África. Economicamente, o continente continuou, por muitos anos, preso ao comércio com os seus antigos colonizadores, mas também qual país consegue a sua independência absoluta? Em um mundo globalizado, os países acabam sendo dependentes entre si.
Pergunto a Alberto, que andou por toda a África, que trabalhou como embaixador em Benin e na Nigéria e que dedicou a vida a estudar o continente africano, se tantas violações de liberdade no presente não seriam uma regressão das liberdades como ocorre no Egito (com uma repressão mais perversa do que a durante a ditadura de Mubarak), na Tunísia (com o retorno do salafismo) e na Líbia (com a atuação de milícias).
– Eu vi a primeira burca na minha vida em Córdoba (Espanha), enquanto um casal de marroquino visitava uma mesquita. Em 1960, eu via pouquíssimas mulheres usando o véu no Egito. Hoje, você visita o Cairo e vai ver pouquíssimas mulheres sem o véu, até porque elas serão hostilizadas. Houve uma reconquista da religião pelo espaço que a religião havia perdido – aponta o poeta e ensaísta, completando que esses mecanismos sociais são implantados para evitar a diferença.
Nos anos 50, início dos anos 60, a África experimentou a grande euforia da liberdade. O colonialismo durou muito pouco tempo (por volta 1900 a 1970), mas causou um dano imensurável como no Congo de Leopoldo, que usava o território como possessão pessoal e não como uma colônia de Estado. Essa foi a maior anomalia da colonização, como lembra o historiador.
– Apesar de ter durado pouco, o colonialismo em toda a Ãfrica teve um impacto espantoso. Em um espaço de 60 anos, apareceu a luz elétrica, o telégrafo, a máquina a vapor, o rádio, a aspirina, a psicanálise, o raio X… A Europa e os EUA promoveram um impacto assustador dos novos costumes. Na medida em que os povos começavam aprender a ler, a escrever, eles começavam a olhar de forma diferente, estabeleciam uma espécie de conflito entre o que eram e o que desejavam ser porque o poder colonial fazia questão de humilhar (vou usar um verbo forte) o conquistado – conta o autor de “A Enxada e a Lança: a África antes dos Portugueses” e “A Manilha e o Lilambo: a África e a Escravidão, de 1.500 a 1700”.
Ideia da África
Com um crescimento de 5% ao ano, com a concentração de mais celulares do que a China e Estados Unidos, o mundo começa a ter uma ideia menos falsa da África de hoje e da África aonde chegaram os europeus, no século XV. Começa a se verificar que os europeus tinham uma visão mais aberta do que aqueles que chegaram antes dos séculos IXX e XX.
– O que houve a partir de 1950 foi que a África recuperou a sua autoestima. Os africanos começaram a reconhecer eles mesmos, a valorizar a sua cultura, o que eles tinham sido e o que poderiam voltar a ser.
Alberto conta que, depois da época áurea de esperança e ativismo, a África começou a enfrentar governos cada vez menos democráticos. E a sofrer algo muito específico, que foi a captação dos meios rurais para alimentar as cidades, para alimentar as cidades afetadas pela fragmentação africana. Havia uma espécie de empobrecimento do pobre e enriquecimento do rico, um fenômeno que acontece sempre na história da humanidade.
– Tivemos o período das grandes ditaduras e, depois, um enfraquecimento do governo e um palatino regresso da tradição africana, que é a do consenso, do respeito pela diferença. Hoje, regimes como o de Robert Mugabe (presidente do Zimbábue desde 1981) são exceção na África. Mas eles foram, até os anos 80, 90, a regra da África. Mas também há uma recaída do “mandonismo”, esta na nossa alma, no ser humano, que precisa ser combatida por nós mesmos. Mandar é querer ser obedecido e que as pessoas atuem como você deseja.
– A África ainda sofre recuos, mas possui avanços. De uma maneira geral, a liberdade cresceu na África. Teve um período de grande desânimo, que foram os anos 80 com guerras civis, conflitos armados. A maioria se organiza. Tudo isso é como eu vejo e como eu sinto, não quer dizer que eu esteja certo, posso estar certo e, às vezes, errado.
A África que majoritariamente aparece na mídia ainda é aquela que dá lugar à penúria, às crises, aos problemas. A África que permeia o imaginário coletivo ficou ligada à ideia de ritmo, dança, savana… Tudo isso faz parte da África, mas não é só isso. No caso do continente africano, Alberto lembra que o ritmo pegou e não vai sair. No plano artístico, pouca gente fala da arte africana, da pintura africana, da arquitetura africana, da roupa tradicional, de bordado tradicional.
– A África sempre foi ambivalente: o lugar das grandes aventuras e das desgraças. Quando eu era menino, era a aventura. Isso nos impressionava muito, nos encantava, mas quando eu fiquei adulto, a visão que predominou foi a visão da África penada, sofrida, maltratada, que era o contrário das cidades do outro, de Timbuktu (Mali), das grandes cataratas, caçadas. Então, a África sempre teve essa visão ambivalente.
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