“O pessimismo em relação ao continente africano acabou. Resta moldarmos o otimismo”. Neste artigo escrito a pedido do Instituto Lula, o pesquisador Beluce Bellucci traça um resumo das recentes mudanças que ocorreram no continente africano após a virada do século e afirma que o momento é oportuno para a ampliação das relações do Brasil com a África. “Mas cuidados devem ser tomados para se evitar repetir posturas colonialistas ou paternalistas”.
A nova conjuntura africana
por Beluce Bellucci*
A virada do milênio representa uma virada na conjuntura do continente africano. Até aquele momento vivia-se um período caracterizado por uma profunda crise generalizada, fruto das políticas e práticas emanadas no pós-independência e, sobretudo, das políticas neo-liberais dos anos 80 e 90. Essas políticas desorganizaram a insuficiente estrutura produtiva instalada, reduziram o Estado, promoveram a substituição das exportações, desindustrializaram, retiraram os subsídios aos produtos alimentares básicos, intervieram no câmbio, etc. Sempre visando atender os fluxos de caixa da economia norte-americana, essas políticas, agravaram a crise e acabaram promovendo conflitos sérios entre regiões e etnias.
O quadro político e econômico atual é totalmente diverso. Do ponto de vista político, hoje há maior estabilidade dos governos, com raras exceções, embora a democracia africana deva ser entendida a partir de suas particularidades. As relações entre o moderno e a tradição perpassam as instâncias da sociedade, muitas vezes criando formas híbridas, outras de coexistência, que nos são estranhas. São aspectos que pouco conhecemos ou mesmo desconhecemos.
As classes sociais se modificaram. As populações rurais foram muito atingidas naquele período, migraram, perderam suas terras, viram os circuitos comerciais de aprovisionamento e escoamento da produção desaparecer, empobreceram, perderam condições de barganha e ficaram a mercê das novas regras. As cidades incharam com uma população que não pode ser absorvida nos empregos, agora reduzidos com a extinção das industrias, e tornaram-se excluídas do processo econômico. Simultaneamente, entretanto, novas estruturas econômicas começaram a se edificar. O comércio, o turismo, certa agricultura, alguns grandes projetos de infraestrutura e, sobretudo, a extração de petróleo e gás, nos 11 países produtores, são exemplos do investimento que o capital internacional vem realizando na África. Com isso, floresceu uma classe média com grande poder aquisitivo de bens de consumo, e ainda uma burguesia nacional que se fortalece através dos manás do Estado, aliadas em diferentes modalidades com grupos de capitais estrangeiros. Por outro lado, aumenta o fosso entre os que possuem e os que não possuem, pois a velocidade do crescimento dos “de cima” é assustadoramente maior do que o movimento de saída da miserabilidade dos “de baixo”.
O continente cresceu em média 5,5% do PIB de 2002-2010, mas ainda não alcançou a taxa de 7%, necessária para atingir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. O desemprego continua altíssimo, cuja taxa passou de 12,2% entre 1994-1997 para 14,2% em 2005-2007, e esta taxa entre os jovens atingiu no período 2000-2006, 26,7%, e atinge não apenas os trabalhadores não qualificados e não instruídos, mas também os de nível universitário. Apesar do aumento da população de classe média, a situação social em muitos países é instável e o quadro político incerto no futuro próximo.
Nos próximos anos haverá, seguramente, transformações nas estruturas econômicas internas para combater a pobreza e o desemprego, a fim de que os africanos não continuem dependendo dos “polos de crescimento” baseados na extração dos recursos naturais, característica da última década. A dependência econômica dos países africanos aos blocos de capitais e a alguns poucos países, embora com parceiros novos, entre eles o Brasil, continua mantendo os seus governos e Estados reféns dos interesses internacionais e na grande maioria alheios à própria população. O que se viu na última década foram os esforços dos governos africanos voltados à rentabilidade do capital, deixando as sociedades africanas cada vez mais à mercê das flutuações e crises do capital internacional. Com isso, houve uma desagregação das suas economias tradicionais, que não se integraram a uma nova ordem econômica, onde apenas pequena parte dela se incorpora. E nesse sentido, as medidas contra a pobreza tornam-se paliativas. A terra na África está sendo liberta das populações que nela viviam há milênios para se colocar em exploração novas tecnologias a serviço dos lucros mundiais. Os Estados são obrigados pelos grupos de capitais e organizações multilaterais a apresentar “boa governança”, isto é, ter a força, os quadros humanos e institucionais para garantir o cumprimento dos contratos internacionais que os beneficiam.
Questões de ordem política, de formas de governo, de liberdade partidária ou de opinião, de eleições livres, de liberdades civis, de segurança interna, de migração, de preservação do meio ambiente, de corrupção, avançam e recuam no continente, segundo o ponto de vista e as circunstâncias.
A democratização na África, assim como em outros continentes, tem vindo junto com a reafirmação das desigualdades e das relações de autoridade, num contexto de “retradicionalização” da ordem social e política.
O crescimento econômico observado nas última década apresenta grandes possibilidades de ganho ao capital, em função dos “pólos de crescimento” baseados na extração dos recursos primários voltados para o mercado internacional, onde a África encontra novos parceiros, sem abandonar os antigos. Com isso, melhora a situação do continente em termos dos indicadores gerais econômicos e sociais, ao mesmo tempo em que mostra probabilidades de progresso e de negócios em novas áreas. Essa transformação, entretanto, vem exigindo um grande sacrifício da maioria da população, que está sendo desenraizada das suas terras e costumes e continua sem perspectiva no campo e na cidade.
No processo de ocupação colonial da África do início do século 20, as potências coloniais prometiam levar a “civilização” por meio da exportação de produtos primários e do trabalho árduo africano. Conhecemos bem os resultados desse empreendimento para o continente: miséria, exploração, humilhação, guerras, desagregação societal. Na investida no século 21, novas e velhas potências nada prometem, pois “negociam relações de parcerias” e respeitam (sempre que possível!) a soberania nacional. Os insucessos serão assim responsabilidades somente dos próprios africanos. Mas a sede do capital secará quais fontes? Os recursos naturais, humanos, culturais? O otimismo dos indicadores atuais não diminui as fragilidades continentais e nem prejudicará os africanos em almejar um futuro com outros valores para além do lucro.
O pessimismo em relação ao continente africano acabou. Resta moldarmos o otimismo. As possibilidades de crescimento econômico existem e vêm ocorrendo, mas em qual direção? Como exemplo, posso citar o investimento fundiário e agrícola na África de fundos internacionais. A procura por terras para atender a demanda, não da fome ou do desemprego africano, mas de indústrias e bocas de países desenvolvidos, é questionável no aspecto humano e na soberania desses países.
O momento oferece oportunidades de se ampliar as relações do Brasil com a África, e elas são desejadas em todos os domínios. Mas cuidados devem ser tomados para se evitar repetir posturas colonialistas oupaternalistas. Conhecer o continente é um importante passo a ser dado.
Beluce Bellucci* trabalha com o continente africano há quase quarenta anos. Viveu mais de uma década em Moçambique, sempre ligado a projetos de desenvolvimento. No Rio de Janeiro, foi diretor do Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Candido Mendes por mais de 15 anos, professor e coordenador da pós-graduação em história da África. É doutor em história econômica pela USP e formado em desenvolvimento econômico e social pela Sorbonne. Milita no coletivo África da Secretaria de Relações Internacionais do PT.
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