Carlos Lopes é o atual secretário-geral adjunto e secretário-executivo da Comissão Econômica para a África da ONU. Ele nasceu na Guiné Bissau e atualmente é uma das principais referências no debate sobre o desenvolvimento do continente africano.
O artigo abaixo foi publicado no jornal etíope Daily Monitor e na revista Africa Report, e é uma versão do discurso que ele proferiu no dia 27 de janeiro último, na XXIV Sessão Ordinária do Conselho Executivo da União Africana.
As ideias apresentadas no artigo são importantes referências para as discussões que a União Africana desenvolve nesse momento sobre o tema da agricultura e segurança alimentar:
Hoje, em uma vila na Zâmbia, uma mulher caminhará cinco quilômetros para chegar a seu hectare de plantação de milho ou batata. Com uma enxada ou cutelo, ela cuidará de sua plantação, cortando as ervas daninhas e fortificando as gavinhas da batata e rezará por a chuva, atrasada já há duas semanas. Isso porque sem chuva ela não poderá colher as 2,1 toneladas métricas por hectare de costume, das quais uma parte alimentará sua família e a outra será vendida no mercado local. A maior parte do dinheiro que ela receberá será usado para pagar as contas da escola e do hospital e medicamentos, caso algum de seus filhos fique doente.
Eu me refiro a uma mulher na Zâmbia, mas poderia estar falando de um jovem pastor aos pés do Kilimanjaro, que levanta todas as manhãs para pastorear antes de correr para a escola; ou de um nômade da tribo Gorane no Chade saheliano procurando desesperadamente por água no deserto; ou de uma vendedora de peixe na costa de Shenge, que agora vende muito pouco por causa das atividades da pesca de arrasto em Serra Leoa; ou ainda de um cafeicultor etíope que vê sua colheita anual reduzir-se em decorrência da infestação da praga da broca do café.
Esse é o perfil médio do agricultor africano – em sua maioria mulheres, frágeis, com um pequeno pedaço de terra, e absolutamente dependentes da natureza e do clima. Dado que aproximadamente 65% dos africanos dependem da agricultura como sua fonte primária de sobrevivência e, apesar da variedade de culturas, animais e práticas de cultivo por todo o continente, não é de surpreender que a África apresente os menores níveis de produtividade agrícola do mundo. Enquanto a produção agrícola em terras indianas cresceu de 0,95 toneladas por hectare para 2,53 toneladas por hectare nos últimos 50 anos, a produtividade na África está estagnada em 1,5! E isso apesar da África apresentar uma disponibilidade de terras agrícolas 3 a 6 vezes superior à da China e da Índia, países que, embora com muito menos terras agrícolas per capita – 0,6 hectare per capita no caso da China e 0,3 hectare no caso da Índia– conseguiram ser bem-sucedidos em assegurar alimento para seus povos.
Apesar de seus imensos recursos naturais, a África é a região que apresenta a maior insegurança alimentar do mundo. Em torno de 226 milhões de pessoas, ou uma em cada cinco pessoas na África, padecem de insegurança alimentar crônica. Com efeito, quando comparada ao resto do mundo, vemos que, embora a África abrigue em torno de 15% da população mundial, ela também é o lar de um terço dos afetados pela fome em nosso planeta.
A despeito desses desafios, não há dúvida de que a agricultura na África também apresenta algumas histórias de sucesso. As intervenções do governo de Gana para introduzir sistemas agrícolas mecanizados e tornar o sistema coletivo de produção em larga escala (block farming) uma realidade para pequenos produtores agrícolas foram exitosas em tornar o país um verdadeiro celeiro de alimentos. Em Uganda, a produção de peixe saltou 35% em relação à última década, resultando em um aumento na produção da aquicultura de 285 toneladas métricas em 1999 para mais de 100.000 toneladas métricas atualmente.
No Egito, a produção atual de arroz está em 9 toneladas métricas por hectare, o que faz desse país aquele com o melhor desempenho em termos de resultado do mundo. Para 2014, espera-se que sua produção de arroz atinja 7,5 milhões de toneladas, com um faturamento próximo a meio bilhão de dólares. O armazenamento de água nas terras baixas da Tanzânia – onde as chuvas sazonais podem atingir de 600 a 900 mm – cresceu muito, o que contribuiu significativamente para melhorar a agricultura de base pluvial das fazendas de arroz de Majaluba. Com a ajuda de sistemas individuais de bombeamento de água de baixo custo (Pump Schemes), hoje os agricultores nigerianos podem recorrer à irrigação de pequena escala usando a água de lençóis freáticos pouco profundos realimentados pelo rio e a elevando por meio de picotas ou cabaças na época de seca para cultivar verduras para os habitantes da cidade.
Infelizmente esses casos de sucesso ainda não são o retrato da situação como um todo. Temos que reconhecer que é preciso aumentar a produtividade. A maioria dos agricultores africanos não foi beneficiada por iniciativas e programas visando a melhoria das técnicas agrícolas ou pela existência de melhores equipamentos agrícolas, sementes, fertilizantes, tecnologia pós-colheita, financiamento rural e assim por diante.
A questão a ser feita é esta: por que tão pouco sucesso foi obtido até agora? Uma resposta simples é que a agricultura, o setor que parece ter as soluções-chave para a transformação do continente, há muito vem sendo negligenciada e mal direcionada. Isso se reflete no fato de que tanto os gastos públicos quanto os provenientes do programa de Assistência Oficial ao Desenvolvimento (ODA, do inglês Official Development Assistance) foram muito mal alocados, não atendendo as necessidades fundamentais da agricultura. Em 2002, por exemplo, a África recebeu quase o dobro do montante de assistência oficial (ODA) para a agricultura – em números, US$713,6 milhões – relativamente aos US$479,8 milhões recebidos pelos países do Leste e Sudeste Asiático. Entretanto, isso não se traduziu em maior retorno por dólar investido. Os gastos dos países africanos em agricultura sempre foram – salvo poucas exceções – menores do que a meta de 10% estimada pelo Programa Compreensivo para o Desenvolvimento Agrícola em África (CADDP).
A história nos conta que as nações que obtiveram sucesso em retirar suas populações da pobreza o fizeram a partir de uma revolução agrícola que envolveu melhorias sistemáticas na produção, armazenamento, processamento e uso. O aumento da produtividade agrícola tem, desde os tempos da revolução industrial europeia, contribuído imensamente para a aceleração das transformações estruturais das economias. O efeito da revolução agrícola nas economias do Brasil, da Índia e da China ilustra como o excedente do aumento da produtividade agrícola pode impulsionar o crescimento industrial.
A agricultura da África ainda está para ser usada como uma real ferramenta de transformação. A África tem a seu alcance a capacidade, o capital humano, os recursos e as oportunidades para liderar o caminho do desenvolvimento sustentável. Um setor agrícola verdadeiramente transformador demanda diversos pré-requisitos para a adoção de uma política consistente. Permitam-me propor a estratégia de seis pontos.
Primeiramente, precisamos voltar a dar ênfase a estratégias e políticas visando à transformação estrutural da agricultura. Tendo em conta uma abordagem integrada entre as dimensões econômicas, sociais e ambientais, devemos focar em comida, terras, água, segurança florestal, recursos biominerais e nos elos tanto urbano-rurais quanto entre a agricultura e os outros setores em evolução das economias africanas. É desse modo que faremos do agronegócio uma meta primordial.
Em segundo lugar, devemos reduzir a vulnerabilidade dos milhões de consumidores e pequenos agricultores africanos aos altos preços e à volatilidade ao mesmo tempo em que aumentamos a resistência a choques. Precisamos derrubar o conceito equivocado de segurança alimentar como um substituto para a redução da pobreza. A segurança alimentar deve ser abordada economicamente e não como um programa de redução da pobreza.
Em terceiro lugar, reconhecendo que a industrialização na África deve ser baseada em commodities, temos que defender este caminho como forma de redirecionar as preocupações relativas à mudança climática no planeta. A agregação de valor deve ocorrer próxima aos recursos, reduzindo-se assim as imensas pegadas de carbono geradas pelo enorme percurso necessário para transportar as commodities para processamento. Os produtores africanos devem estabelecer os preços em vez de se verem submetidos aos que hoje os estabelecem. Nosso tamanho nos capacita a estabelecê-los e a influenciar as tendências de preços. O acordo proposto entre as processadoras de cacau Cargill e Archer Daniel Midlands, se aprovado, dará às duas empresas o controle de até 60% do comércio mundial de cacau, quando a África é quem o produz!
Em quarto lugar, devemos redefinir a política industrial a fim de evitar uma abordagem padrão, enquanto conjunto de intervenções predefinidas. Em vez disso, essa política deve ser internalizada no setor privado visando gerar processos e procedimentos que possam compreender e atender necessidades industriais em constante mutação. É assim que, mais do que copiar, passamos a aprender com a substituição de importações da América Latina e a via da exportação adotada em partes da Ásia. Nossa industrialização deve olhar para nossos ativos, commodities e o mercado africano em crescimento, e maximizar as conexões com o setor agrícola.
Em quinto lugar, preservar as oportunidades de crescimento verde que se apresentam para a África. Essas oferecem um leque imenso de oportunidades de investimento. A África precisa se ver como protagonista na resolução dos problemas que envolvem as mudanças climáticas, ao invés de se ver como vítima. Com a maior reserva de terra arável sem uso do mundo, a África é líder natural em um mundo onde falta comida. Não nos mantermos presos a nenhuma preferência tecnológica também nos permitirá superá-las pela adoção de energia limpa e verde, alavancando nosso maior potencial do mundo nesse tocante.
Por último, a África precisa se manter firme contra os protocolos e políticas comerciais. Por exemplo, os subsídios agrícolas dos países desenvolvidos continuam a distorcer os mercados internacionais de commodities e a gerar dumping, deprimindo os preços e, por conseguinte, a lucratividade dos negócios dos pequenos produtores agrícolas africanos. Este “Ano da Agricultura e Segurança Alimentar” proporciona a oportunidade para a África exercer um papel de liderança nas negociações agrícolas multilaterais, com foco no acesso aos mercados internacionais, na concorrência exportadora, com o uso de subsídios de exportações, e na eliminação dos subsídios nos países desenvolvidos. O recente acordo da OMC em Bali deixou patente a força da Índia, uma economia menor que a da África. A lição é óbvia.
As possibilidades de crescimento na África são ilimitadas e a África está pronta para dar o próximo passo –manter o crescimento e fazer com que este seja transformador. A transformação do modelo agrícola africano deve capitalizar nossa força e recursos enquanto aproveita os novos avanços na ciência e descarta tecnologias obsoletas. Estamos perto do limiar do que é necessário para acabar com a pobreza. Previsões de crescimento de 6% para este ano nos mostram que precisamos de 1% a mais para atingir os famosos 7% que mudarão nossa sorte.
Os ganeses têm por ditado que ‘o baterista toca melhor com a barriga cheia’. Estimativas recentes da Comissão Econômica da ONU para a África (CEA) e seus parceiros mostram que os países africanos perdem de 2 a 16 por cento do PIB por conta da desnutrição infantil. Nós podemos abordar essa questão de modo convincente. Mais de US$15 bilhões foram gastos em ajuda agrícola à África ao longo das últimas duas décadas e ainda não conseguimos lidar com a questão básica da desnutrição. Não há mais sobre o que falarmos para finalmente entendermos que precisamos mudar a velocidade e o rumo. Precisamos de uma revolução agrícola na África.
Para o jovem pastor que vive nos montes do Kilimanjaro ou no Sahel, melhores pastagens trarão a possibilidade de que ele passe mais tempo na escola; à vendedora de peixe, uma melhoria na pescaria através de medidas que acabem com a pesca de arrasto em alto-mar, significará mais renda para sua família; ao cafeicultor etíope, sementes de café resistentes a pragas melhorarão a qualidade e aumentarão a produtividade de sua colheita; e à pequena produtora de milho na Tanzânia, um aumento na produção de 2,1 toneladas métricas por hectare para 10 toneladas métricas por hectare significará que ela terá dinheiro suficiente para manter seus filhos na escola e começar um pequeno negócio.
A Comissão Econômica da ONU para a África (CEA) já está trabalhando em conjunto com os governos de Botsuana, Etiópia, Gana, Costa do Marfim e Ilhas Maurício para instituir tais medidas por meio de planos de industrialização baseados em commodities de autoria da própria CEA.
Nesse contexto, 2014, o ano da “Agricultura e Segurança Alimentar na África”, mostrará sua relevância e a agricultura se tornará um verdadeiro catalisador da mudança do continente à medida que buscamos conquistar, nas palavras de Nelson Mandela, ‘uma África onde haveria trabalho, pão, água e sal para todos’.
*Carlos Lopes é subsecretário geral da ONU e secretário executivo da CEA
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