Em 4 de dezembro de 2018, a ministra do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia negou habeas corpus ao ex-Presidente Lula. Tratava-se do julgamento de ação em que a defesa do ex-Presidente demonstrara a parcialidade de Sérgio Moro nas decisões até então proferidas pelo hoje ex-juiz. Lúcia considerou a tese de perseguição política e de comprometimento subjetivo de Moro “extremamente frágil”.
Mesmo que já se tenha passado um mês desde aquela declaração infeliz e descolada da realidade, ainda é tempo de mostrar ao público o que a ministra Cármen Lúcia não enxergou ou não quis enxergar nos autos do processo.
São, afinal, evidências adicionais de que o Judiciário brasileiro vem modulando a velocidade de suas decisões ao calendário político.
E para não sermos injustos com a ministra – vale dizer – é importante registrar que, antes dela, o relator Edson Fachin votou de modo semelhante, mas deste não se esperava outra coisa – uma vez que sua inflexão leitora na compreensão da semiologia jurídica assombrou o próprio mundo da magistratura.
Vejamos os fatos: Lula foi condenado neste caso por “ato de ofício indeterminado”. Ou seja, mesmo na sentença em si, Moro foi incapaz de apontar qual o ato criminoso que Lula teria cometido.
Há, no entanto, vários atos judiciais de Moro contra Lula, determinados, públicos e alguns ‘mais’ que parciais, abertamente fora da lei e das normas que regem a atuação de um juiz.
O processo do triplex, por exemplo, foi aquele que impediu Lula de ser candidato a Presidente da República em 2018, numa disputa cuja liderança nas pesquisas de intenção de voto lhe era natural e consagradora.
A ONU, podemos lembrar, emitiu uma decisão para que Lula participasse da eleição por considerar que havia – e há – a possibilidade de seu processo ser suspeito, viciado por parcialidade dos juízes e abusos de autoridade. Mas a decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU não foi respeitada pelo Brasil, violando-se, assim, um tratado que foi assinado soberanamente pelo país.
Sem Lula, a eleição foi ganha por Jair Bolsonaro, como todos já sabemos. O que choca, no entanto, é que, mesmo antes do fim do segundo turno, Bolsonaro chamou Moro para ser seu ministro da Justiça, em uma relação clara de promiscuidade político-judicial que descortina as razões da perseguição a Lula.
Diante desta clara ação ilegal, subscrita em nosso universo jurídico e chancelada por tratativas espúrias de bastidores eleitorais em ritmo de barganha, restou a este colunista a compilação de 10 fatos que possivelmente passaram ao largo da sensibilidade sôfrega de uma das nossas togas supremas.
São dez fatos amplamente documentados e públicos em que a ministra Cármen Lúcia parece não considerar o que são provas de suspeição (do ex-juiz Sérgio Moro).
Destaque-se – antes de arrolar os episódios que comprovam a perseguição de maneira pedagógica – que o atual Ministro da Justiça é visto até por seus apoiadores como alguém que perseguiu – e persegue – o ex-Presidente Lula. São materiais fartos na cena jornalística que subscrevem a tese da perseguição que, a rigor, nem viceja mais como tese – e sim como fato. Capas das revistas Veja e IstoÉ, por exemplo, dentre tantas matérias iconograficamente siamesas, retrataram Moro como um lutador de boxe contra Lula.
1. A condução coercitiva de Lula
Em 4 de março de 2016, o ex-Presidente Lula – juntamente com sua família – foi alvo de buscas e apreensões determinadas pelo Juiz Sérgio Moro. Àquele momento, Lula jamais tinha sido intimado para depor na Operação Lava Jato e, sabe-se: não se pode conduzir coercitivamente uma pessoa sem que ela tenha, por qualquer razão, resistido a depor em momento anterior – o que não foi o caso de Lula. O próprio STF reconheceu, tardiamente, essa prática como ilegal. E há muito aprendemos: Justiça que tarda é Justiça que falha.
As casas dos os filhos do ex-Presidente, o Instituto Lula e as residências de dois de seus dirigentes também sofreram buscas e apreensões, sem justificativas e sem que nada de relevante fosse encontrado, episódios fartamente divulgados pela imprensa.
Houve, no entanto, abusos de ordem mais grave: a condução coercitiva foi vazada com antecedência para a imprensa e a Operação compartilhou, na sequência, vídeos da coerção para um filme de publicidade explícita da Lava Jato, completando o substrato subjornalístico para ser usado em campanha eleitoral.
2. A quebra do sigilo telefônico de Lula
Entre 19 de fevereiro e 7 de março de 2016, despachos do ex-juiz Sérgio Moro autorizaram grampos contra 39 números de telefone, de 13 pessoas e entidades ligadas ao ex-Presidente Lula.
O ex-juiz e atual Ministro da Justiça de Bolsonaro também autorizou a interceptação dos terminais telefônicos utilizados pelo ex-Presidente Lula, por seus familiares e colaboradores. O grampeamento tão amplo, por sua vez, foi ordenado antes de qualquer depoimento de Lula, violando as garantias constitucionais do sigilo telefônico e da proteção da intimidade.
Segundo o critério legal, a interceptação telefônica se mostra aplicável apenas “para prova em investigação criminal e em instrução processual penal” (artigo 1º, caput, Lei n. 9.296/96), nos casos em que “houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal”, se a prova não “puder ser feita por outros meios disponíveis”, e se a suposta infração penal não culminar, “no máximo, com pena de detenção”.
No caso, como pudemos ver e como foi fartamente divulgado pela própria imprensa, não havia nenhum crime definido sendo investigado. O objetivo era apenas grampear e monitorar as conversas e ações do ex-Presidente.
Diante de tantos fatos estarrecedores, seria inusitado ainda se surpreender com mais violações. Não no caso de Moro. A interceptação requerida pelo ex-juiz também incidiu sobre o ramal-tronco de um dos escritórios de advocacia responsáveis pela defesa do ex-Presidente, grampeando – pasmem – dezenas de advogados.
Este protocolo escandaloso foi realizado com pleno conhecimento do magistrado, visto que foram realizados dois alertas da empresa de telefonia – sic – responsável pelo grampo ilegal, porque a lei define expressamente que é vedada a ação de grampear advogados.
3. Jurisdição indevida e a falta de relação dos fatos com a Petrobras
Como é de conhecimento do universo jurídico técnico, o juiz Sérgio Moro aceitou julgar o caso do triplex no Guarujá, mesmo sem ter nenhuma evidência de qualquer relação entre o apartamento e os três contratos da empresa OAS com a Petrobrás listados na ação. Recordando: a Operação Lava Jato e as ações aceitas por Moro destinam-se exclusivamente a investigar, denunciar e julgar desvios ocorridos na Petrobrás. E ponto.
O apartamento, como é público e notório, fica no estado de São Paulo e o caso só foi julgado por Sérgio Moro no estado do Paraná graças à inclusão artificial dos tais contratos no processo, feita pelo Ministério Público e aceita pelo agora Ministro da Justiça de Bolsonaro.
Moro negou à defesa de Lula qualquer perícia contábil para analisar se recursos da Petrobrás realmente foram, de fato, usados no triplex do Guarujá. Ignorou documentos comprobatórios de que o imóvel estava dado, pela OAS, como garantia de operações financeiras, ou seja: o imóvel já estava com seu valor de venda comprometido com um fundo de investimento. Jamais poderia ser doado, emprestado, cedido e nem mesmo vendido a Lula ou a qualquer um.
No final do processo, por demanda da defesa (os chamados embargos infringentes) o ex-juiz e agora ministro disse com todas as letras – perfazendo praticamente uma confissão – que jamais havia dito na sentença que havia recursos da Petrobrás relacionados ao triplex.
4. A ilegalidade rudimentar de Moro
Em 16 de março de 2016, quando Lula foi nomeado ministro da Casa Civil pela então presidenta Dilma Rousseff, o então juiz Sérgio Moro produziu uma ilegalidade rudimentar: ao remeter o caso para o Supremo – no exato momento da nomeação de Lula e antes mesmo dele assinar o termo de posse – Moro divulgou os áudios e as transcrições de interceptações telefônicas entre o ex-Presidente Lula, sua esposa, seus advogados, sua família (incluindo esposas de seus filhos) e terceiros, mesmo o caso não lhe pertencendo mais por força constitucional e de seu próprio despacho.
5. A divulgação ilegal do grampo
Na esteira de ilegalidades tão elementares, Moro cometeu um crime em particular – a céu aberto e à vista de todos – ao tornar público um grampo ilegal, feito após sua própria ordem de cessar as gravações, de uma conversa telefônica entre uma presidenta da república e um ex-Presidente já nomeado ministro de estado.
Não satisfeito, o ex-juiz levantou o sigilo desta comunicação juntamente com as demais, entregando o áudio e sua transcrição aos veículos de imprensa – com primazia para a Rede Globo – que divulgaram o material à exaustão e com viés sensacionalista. Uma queixa de Marisa Letícia Lula da Silva em conversa com um dos filhos foi tratada como escândalo.
Vale lembrar: até hoje, mais de dois anos depois das violações, o Conselho Nacional de Justiça não discutiu esse caso concreto de crime do juiz Moro, embora tenha entrado e saído de pauta, pelo menos duas vezes.
A liberação ilegal das gravações na tarde daquela quarta-feira de 16 de março foi claramente projetada para criar um clamor público e exercer uma forte pressão política, com o objetivo de reverter a nomeação do ex-Presidente Lula como Ministro de Estado, que viria a ocorrer menos de 48 horas depois por decisão liminar e monocrática do ministro Gilmar Mendes.
Foi uma atuação política agressiva, com todas as letras. Embora, em manifestação escrita ao Supremo, Moro tenha pedido desculpas com a curiosa palavra eufêmica “escusas” pelo que fez, em diversas manifestações posteriores ele afirmou não ter se arrependido de uma ação de abuso de autoridade contra Lula, ação essa que, como sabemos, violou expressamente a lei.
6. A nota pública política de um juiz de primeira instância
O ex-juiz Sérgio Moro emitiu uma nota política naquela ocasião afirmando estar “tocado” pelas manifestações ocorridas naquela data.
Destaque-se que essas manifestações, como é público e notório, tinham como alvo, dentre outros, o governo Dilma e o ex-Presidente Lula. Moro se juntava, portanto, à militância de partidos de direita pelo impeachment e contra o PT.
7. Teori interpela Moro e Moro ‘espana’
Àquele momento, o Ministro do STF Teori Zavascki cobrou do então juiz Sérgio Moro explicações sobre as medidas por ele adotadas que invadiram até mesmo telefonemas da Presidência da República.
Ao responder o ofício encaminhado por Teori Zavascki, o ex-juiz Sérgio Moro fez diversas acusações contra o ex-Presidente Lula, comportamento incompatível com a imparcialidade de um juiz. O gesto demonstrou pré-julgamento e ânimo de promotor e não de juiz, definitivamente.
8. A operação para sustar o habeas corpus de Favretto
Como todos pudemos acompanhar em vários veículos da imprensa, os eventos em torno do habeas corpus concedido a Lula em julho – e não cumprido – foram tomados de sucessões vertiginosas de ilegalidades encadeadas.
Ao tomar conhecimento de ordem de habeas corpus concedida em 8 de julho de 2018 pelo Desembargador Federal Rogério Favretto, do TRF-4, em favor do ex-Presidente Lula, o ex-juiz Sérgio Moro – em pleno gozo de suas férias, em Portugal – proferiu decisão determinando que o habeas corpus não fosse cumprido pela Polícia Federal.
Traduzindo: um juiz de primeira instância – que sequer era o responsável pelo processo de execução penal – bloqueou a decisão proferida por um Desembargador, estimulando a desobediência de decisão judicial e incorrendo no crime de obstrução de justiça.
A atitude de Moro depois seria ainda usada pelo deputado Eduardo Bolsonaro como “bom exemplo” para “peitar” instâncias superiores da Justiça, sendo que no exemplo hipotético citado, o filho do Presidente eleito, falava do próprio Supremo Tribunal Federal, declaração temerária e antidemocrática fartamente divulgada pelos veículos de imprensa.
9. A quebra de sigilo de Palocci como arma eleitoral
Na véspera do segundo turno das eleições presidenciais de 2018, o ex-juiz e agora Ministro da Justiça Sérgio Moro – por iniciativa própria – determinou a juntada do acordo de delação firmado por Antônio Palocci nos autos da ação penal que trata do chamado “Sítio de Atibaia”. Moro também determinou a juntada de um depoimento prestado por Palocci a Procuradores da Lava Jato – escolhido por critérios meramente subjetivos do magistrado.
A intenção, à furiosa evidência, foi de causar mais um fato político. O próprio juiz reconheceu no despacho, que os depoimentos de Palocci não poderiam ser utilizados no julgamento do mérito da ação penal, pois não foram submetidos ao contraditório.
Moro estava de posse desses documentos havia já alguns meses. Não havia qualquer justificativa jurídica ou processual para que a juntada desses documentos, com a subsequente retirada do sigilo, tivesse ocorrido em pleno processo eleitoral, a não ser para prejudicar a candidatura do Partido dos Trabalhadores.
A delação de Palocci, de maneira pouco surpreendente, foi rejeitada pelo Ministério Público da Lava Jato. Até Moro a considerou, na ocasião, destituída de provas. Mas foi divulgada de forma espetaculosa por Moro (e agora Palocci encontra-se em casa, premiado por depor sem provas contra Lula).
10. O ‘pagamento pelo serviço’ em forma de Ministério
Uma das constatações mais estarrecedoras nesse jogo de cartas marcadas entre uma justiça seletiva que logrou perseguir de maneira escancarada um segmento político é o conjunto de tratativas que levaram Moro a ser agraciado com um ministério no governo do detrator político mais agressivo do ex-Presidente Lula (aquele que, justamente, disse querer Lula ‘apodrecendo’ na cadeia).
Os fatos são de conhecimento público.
Sérgio Moro manteve conversas com Paulo Guedes, assessor econômico do candidato Jair Bolsonaro e já então indicado futuro ministro da economia, ao longo do processo eleitoral; conversas admitidas (confessadas?), hoje, pelo próprio ex-juiz.
No início do processo eleitoral, como restou evidente em todas as matérias jornalísticas sobre a campanha, Lula detinha o primeiro lugar nas pesquisas e possivelmente seria eleito no primeiro turno caso não tivesse sido impedido de participar do sufrágio por decisão do TSE – contrariando liminar concedida pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU – baseado justamente na condenação conduzida por Moro, repleta de falhas e arbitrariedades.
Trocando em miúdos e falando em língua de gente: Bolsonaro só foi eleito porque a Justiça impediu a participação de Lula no processo eleitoral. E para esse fato a atuação de Moro foi decisiva.
Moro, na verdade, usou explicitamente seu cargo de juiz para impedir que Lula pudesse participar do processo eleitoral; sua atuação foi decisiva para eleger Jair Bolsonaro que, agora, terá Sérgio Moro a seu lado para intensificar a perseguição ao seu mais forte adversário político e, assim, prosseguir na escalada de arbitrariedades contra o próprio Estado Democrático de Direito.
O arbítrio passou no Supremo e só Cármen Lúcia não viu.
Como se pode notar, a ministra do STF Cármen Lúcia preferiu ignorar esses 10 clamorosos itens arrolados por uma equipe técnica, ampla e pedagogicamente divulgados pela imprensa, em vez de consagrar ao Tribunal Supremo do País a leitura básica da realidade concreta, rigorosa e protocolarmente debruçada em legítima defesa de um ex-Presidente da República.
Resta a certeza de que, a despeito das arbitrariedades e violências associadas a indiferenças e vistas grossas das cortes superiores, a verdade ruma ao seu destino fatal da consagração histórica. Se é o tempo que impede que a verdade prevaleça, então a luta pela aceleração desse tempo será a luta a ser travada por todos os segmentos democráticos dignos de respeito e de autoestima republicana do País.
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