O retorno do Brasil ao Mapa da Fome, com mais de 33 milhões de pessoas sem ter o que comer e 125 milhões com algum tipo de insegurança alimentar, tem como uma das causas principais a destruição de instrumentos usados pelo poder público para articular políticas que asseguravam o direito básico à alimentação.
Todas as políticas públicas bem-sucedidas implementadas ao longo dos Governos Lula e Dilma, e que foram responsáveis por tirar o Brasil do Mapa da Fome, foram dizimadas, inclusive as instâncias e ferramentas de gestão.
O desmonte das políticas públicas de combate à fome promovido por Bolsonaro é anterior à pandemia da Covid-19. Em janeiro de 2019, seu primeiro ato de governo foi extinguir o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), com o objetivo de eliminar o controle e a participação da sociedade civil, que é extremamente atuante nesta área.
Também enfraqueceu a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar (Caisan). As duas instâncias integravam o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, criado por lei em 2006. E atuavam articulando políticas transversais e propondo soluções para diferentes fragilidades no desafio de garantir que todos comessem o suficiente para se nutrir.
O descaso, já em 2019, fez com que o país não formulasse o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. O último foi elaborado no governo da Presidente Dilma, para vigorar entre 2016 e 2019. O Plano consolidava as medidas emergenciais, diretas e de curto prazo, para assegurar que ninguém passasse fome, e outras estruturais de médio e longo prazo, para tirar as famílias da situação de pobreza.
Reunidos na Caisan, um conjunto de 18 ministérios definia suas contribuições para atacar as muitas vulnerabilidades que deixam famílias com fome. Estímulo à produção agrícola e à agricultura familiar, transferência de renda, restaurantes populares, bancos de alimentos e merenda escolar, além de geração de emprego e valorização do salário mínimo. O acesso à saúde, educação e moradia eram algumas das muitas pontas que eram atacadas.
O descaso trouxe a fome de volta neste 2022. Paralisada naquele janeiro, a Caisan foi reativada às vésperas da eleição, por decreto em 2021. E estabeleceu, no artigo 3º, a elaboração do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. A determinação não saiu do papel até hoje.
“Com a extinção do Consea e, portanto, a não realização da Conferência Nacional, e com a inexistência da Caisan ficamos sem nenhum mecanismo que acompanhasse essa agenda e responsabilizasse setores pela implementação de programas e políticas. Mais que isso, todos os problemas enfrentados todos os dias por nossa população foram aprofundados pelo não reconhecimento da sua existência. Políticas públicas foram extintas e paralisadas pelo profundo corte no orçamento público, desestruturação de equipes e instituições”, revela Elisabetta Recine, integrante do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília e presidenta do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional no momento da sua extinção.
Ela chama atenção também para o fato de o diálogo interfederativo ter sido extinto com o fim do Consea e da Caisan. Os Conseas estaduais, conta, seguem dialogando entre si, mas encontram desafios na interlocução com as câmaras intersetoriais e não têm incentivo nem apoio do nível federal.
Elisabetta diz que o aprofundamento dramático do problema da fome e suas consequências a partir da pandemia já se anunciavam em 2016, com o golpe que tirou Dilma Rousseff do poder, e foram explicitadas em janeiro de 2019 com as ações de Bolsonaro.
“A partir de 2019 não houve reconhecimento de que a falta de acesso a uma alimentação saudável, a falta de renda e de condições mínimas de vida digna eram problemas estruturais da sociedade e do país”, destacou ela.
Elisabetta acrescentou que o tema deixou de ser uma agenda no Brasil, por vários motivos. “Concepção e modelo do que deve ser o nosso país. E isso gera um processo em cascata de desestruturação de todas as políticas públicas que estavam sendo construídas”, explica, acrescentando que a intersetorialidade no debate da fome e alimentação saudável, com adoção de políticas transversais e articuladas, é importante porque a fome é a ponta de um iceberg. “Não conseguir garantir o mínimo, o básico fundamental para a sobrevivência, que é a alimentação, demonstra que todas as demais condições e necessidades estão comprometidas: educação, moradia, trabalho, assistência social e outros.”
Tereza Campello, que foi ministra do Desenvolvimento Social de 2011 a 2016, diz que as ações do governo Bolsonaro desarticularam uma rede bem-sucedida que atuava na transversalidade que a gestão da segurança alimentar demanda. “É uma rede que, se não for orquestrada e conduzida para um mesmo sentido, atua de forma completamente esquizofrênica”, disse.
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