“Uma ALCA hoje seria um desastre”
Por Martín Granovksy
Antes de um ato em São Paulo organizado pelo Instituto Lula e
CLACSO, Amorim explicou por que continua querendo uma política externa “ativa e
altiva”, qual o perigo representado pelo governo de Temer, quais os limites da
Aliança do Pacífico e como se relacionar com os Estados Unidos.
Prega uma política externa “ativa e altiva” e cumpre o lema para
si mesmo. Aos 74 anos, Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores de Lula
durante seus oito anos de governo e ministro da Defesa de Dilma Rousseff em seu
primeiro mandato, faz parte de um grupo que assessora o secretário-geral das
Nações Unidas em questões de saúde e crises sanitárias. Mas sempre reserva um
tempo para a política e a pesquisa: amanhã apresentará seu novo livro e aceitou
um diálogo telefônico com este jornal.
Em meio ao processo anticonstitucional em andamento no Brasil, às
19hs em São Paulo Amorim dará uma palestra e assinará autógrafos na primeira
página de seu último livro, “Teerã, Ramallah e Doha: Memórias da política externa
ativa e altiva”. O ato será transmitido via streaming pela internet pelo
Conselho Latino-americano de Ciências Sociais, um dos organizadores junto com o
Instituto Lula, a Fundação Perseu Abramo do PT, a antigolpista Frente Brasil
Popular, a Fundação Friedrich Ebert e o Grupo de Reflexão sobre Relações
Internacionais.
–Michel Temer encabeça um governo golpista ou interino?
–Prefiro evitar um problema semântico. O que aconteceu no Brasil é
como se a mudança de Cristina para Mauricio Macri tivesse ocorrido sem a
intermediação de uma eleição. Sem entrar nos aspectos técnicos, na minha
opinião, na acusação contra Dilma Rousseff não é firme a suspeita de que ela
tenha cometido crime de responsabilidade fiscal. Além disso, o mecanismo de
impeachment não foi feito para mudar um governo por outro de tendência
opositora. Em um sistema presidencialista, essa tarefa corresponde ao povo
quando vota. Do contrário, põe-se em risco a legitimidade política no sentido
weberiano da expressão. Quando foi o impeachment de Fernando Collor de Mello,
gerou-se um grande sentimento de união nacional. Hoje ocorre o inverso. Não sei
se o governo Temer vai se sustentar ou não. Se sim, teremos um longo período de
dificuldades. Estive nos Estados Unidos bem no momento do julgamento político
de Richard Nixon, que renunciou antes de que a Câmara dos Representantes
tratasse seu caso no plenário, e no julgamento de Bill Clinton, que não foi
considerado culpado pelo Senado. Ninguém pensava que um impeachment contra
Nixon teria como resultado imediato sua substituição, sem eleições, por George
McGovern, um democrata que havia se oposto à guerra do Vietnam. Nem que Clinton
seria julgado para ser substituído pelo ultraconservador Jesse Helms. A mudança
total de orientação político-ideológica não é o objetivo do impeachment.
–Os peritos do Senado emitiram parecer nos últimos dias de que
Dilma não cometeu delito.
–Sim, foram muito claros. Sobre uma das acusações já se
estabeleceu que a presidenta não teve nenhuma participação. Ou seja, nem sequer
houve uma ação, nem boa nem má. As decisões foram tomadas abaixo dela e através
de funcionários que se utilizaram do que acreditaram que fossem as regras.
–O que mudou na política externa com a dupla Serra-Temer?
–Para levar adiante uma boa política externa, é bom ter um governo
com legitimidade e apoio interno. Lula desfrutava das duas coisas, além do que
ele mesmo significava como símbolo: um torneiro mecânico que chegou à
Presidência. Era uma grande contribuição histórica. A visão de Lula sobre o
mundo reconhecia o papel que o Brasil poderia ter na região e no planeta não
apenas para defender seus próprios interesses, mas também para ajudar nos
processos de evolução nas relações internacionais. As pessoas dizem às vezes
que o Mercosul foi um fracasso, mas o Mercosul evoluiu: a integração se
desenvolveu, criou-se a Unasul, criou-se a Celac, coisas que não se viam em 200
anos de vida independente. E Lula não fez isso sozinho. Apesar das
dificuldades, nunca foram tão boas as relações com os países sul-americanos,
mantendo sempre a pluralidade ideológica. Com a Argentina, obviamente, as
relações foram boas, mas também com Hugo Chávez e com Álvaro Uribe. O que
muitos hoje não percebem é que a integração – e isso se vê agora na Europa –
não é só o aumento do comércio.
–O que mais pode medir o nível de integração, além do comércio?
–O esforço para aprofundar a paz e a cooperação, que é o que
sempre desejamos na América do Sul. E, para além da região, essa visão do mundo
nos permitiu a aproximação com a África e com os países árabes. Criamos o IBAS,
o grupo da Índia, Brasil e África do Sul. Os BRICS surgiram do desejo da Rússia
e da China de participar no IBAS. Junto com a Argentina, jogamos um papel
importante na negociação do G-20 comercial. Juntos resistimos à ALCA como um
acordo que não nos servia e não apenas por uma questão de doutrina. Não nos
favorecia na agricultura e criaria dificuldades para nós, por exemplo, na
propriedade intelectual. Fizemos isso sem perder as boas relações com a Europa
(criamos uma parceria estratégica com eles) e com os Estados Unidos. Lula e
George Bush trocaram opiniões em Camp David. Participamos, em parte a pedido de
Barack Obama, nas negociações com o Irã, que demonstraram que era, sim,
possível chegar a um acordo, como ficou demonstrado dois anos depois. Tínhamos
uma visão no sentido de buscar um mundo cada vez mais multipolar.
–Serra propôs, sem dar detalhes, “flexibilizar o Mercosul”.
–Em um mundo de grandes blocos, a pior coisa que podemos fazer é
nos debilitarmos. Pode ser que o Serra mude e dê uma guinada, mas se ele
insistir nas declarações iniciais sobre a flexibilização do Mercosul, deveria
saber que a longo prazo isso significa acabar com o Mercosul como o que ele é,
ou seja, um projeto de união e vocação. Não podemos ser apenas uma área de
livre comércio sem significado político. No final dos anos 50, na Europa havia
dois projetos: um, o mercado comum europeu; outro, a área europeia de livre
comércio. Ganhou o primeiro projeto. Quem se lembraria de uma área de livre
comércio? Ninguém. As áreas de livre comércio vão e vêm. A Unasul criou o Conselho
de Defesa Sul-americano. Essas coisas valem muito. Ficam.
–Em suas dez diretrizes para os diplomatas do Itamaraty, Serra
disse que não fará uma diplomacia ideológica e menos ainda uma diplomacia de um
só partido. O senhor se sentiu aludido como ministro de Relações Exteriores de
Lula durante oito anos?
–É muito curioso. Quando a direita está no poder diz que sua
diplomacia é de Estado. Quando a centro-esquerda governa, a direita critica
dizendo que a diplomacia é “ideológica”. Ideológico é sempre o outro, não é? O
problema é que a direita no poder mantém os interesses de sempre, os da elite
política e social, e os confunde com interesses de Estado. Mas o que
corresponde ao Estado está na Constituição brasileira. Nela figuram os
princípios de autodeterminação, de não intervenção, de solução pacifica das
controvérsias e de integração latino-americana. Buscar a prosperidade através
de acordos bilaterais de livre comércio é de Estado e buscá-la através de
negociações multilaterais na OMC é ideológico? Colocar o centro na OMC não tem
nada de esquerda nem é partidarista. E criticar essas políticas supõe pensar,
ideologicamente, que assinar acordos é fácil. Não. É difícil. É mais fácil
falar do que fazer.
–O que o senhor opina do programa de Temer “Uma ponte para o futuro”?
–Que é partidarista. Representa os objetivos das classes
dominantes. O que nós fizemos, diferentemente, tem a ver com os interesses da
população brasileira: projetar uma visão mais nacional, distribuir melhor a
renda, buscar uma política industrial própria…
–Em 2005 os países do Mercosul mais a Venezuela, que então não era
membro pleno, impediram a formação da ALCA. Deveriam formá-la hoje? A Cúpula de
Mar del Plata ficou velha?
–Uma ALCA hoje seria um desastre. Seguiria o critério dos acordos
de última geração como o TPP – Trans-Pacific Partnership – com cláusulas inaceitáveis
ao menos para o Brasil. Já eram inaceitáveis inclusive antes de Lula. Por exemplo,
a forma de resolver diferenças entre investidores estrangeiros e o Estado.
–Fora do Brasil.
–Ou as cláusulas sobre propriedade intelectual. Inclusive nos Estados
Unidos esse tipo de acordos gera grande resistência popular. O questionamento é
que foram feitos para as multinacionais e não para os povos. Se isso é assim
nos Estados Unidos, imagine o que seria para nós. Voltando à questão da ALCA,
em 2005 as negociações já estavam paralisadas e a Cúpula de Mar del Plata pôs a
pedra final.
–Um acordo entre o Mercosul e os Estados Unidos seria possível?
–Não tenho por que excluir essa possibilidade. Mas em outras
condições e com outras concessões. Pensar na ressurreição da ALCA é um absurdo.
E para que se dê uma negociação pragmática com os Estados Unidos, antes devemos
continuar trabalhando na diversificação de relações. Se não, pagaremos um custo
muito alto. Mas a capacidade de negociação será muito reduzida se liquidarmos a
união aduaneira do Mercosul. Tabaré Vázquez disse uma vez: “Podemos ter alguma
negociação comercial, desde que não vulnere o coração do Mercosul”.
–Vejo que segue sendo muito mercosulista.
–Para uma palestra procurei números. Nos últimos anos, o comércio
intra-Mercosul se multiplicou por doze, enquanto o comércio mundial se
multiplicava por quatro. Além disso, beneficiamo-nos pelo intercâmbio recíproco
de produtos de alto valor agregado. Mas os problemas devem ser resolvidos no
diálogo e não com a subordinação de cada país a uma potencia fora da região.
–O que deveria ser feito com a crise venezuelana?
–No passado, países como Argentina, Brasil e Chile jogaram um papel
importante. Hoje há poucos governos que podem ajudar para que haja um diálogo,
que é indispensável, entre o governo e as forças políticas de oposição. Nos
fizemos isso com o Grupo de Amigos da Venezuela em 2003, formado por Brasil,
Chile, Espanha, Estados unidos, México e Portugal depois do golpe de 2002. E
Chávez, é claro, esteve de acordo. Hoje devemos potencializar a presença da
Unasul com a colaboração de ex-presidentes e ex-primeiros-ministros, como já
ocorre com Leonel Fernández da República Dominicana e José Luis Rodríguez
Zapatero da Espanha. O diálogo implica concessões dos dois lados. Chávez compreendeu
isso na época. Aceitou um referendo revocatório e admitiu a presença de
observadores internacionais. Maduro é um presidente eleito. Isso é um dado. Há
uma oposição forte que possui maioria no Legislativo. Isso é outro dado. É bom
que Maduro e a oposição dialoguem. A voz do Brasil está enfraquecida por sua
situação interna, mas ao menos não deve fazer sugestões que piorem o clima na
Venezuela. Felizmente nisso vejo certa prudência, que ficou demonstrada na
atitude cauta durante a discussão da Carta Democrática na OEA.
–Brasil e Argentina deveriam se integrar na Aliança do Pacífico? Deveriam
ser observadores?
–Sempre se pode observar. Se o Mercosul em conjunto fosse
observador seria muito bom. Mas há certa visão mistificada da AP. Eles
comerciam mais com o Mercosul do que com países da própria Aliança. Os quatro
têm uma atitude similar perante o comércio internacional. Não incluem normas
sociais ou de vantagens mútuas de residência ou seguridade social. Pelo outro
lado, vale lembrar que já temos acordos de livre comércio com todos exceto com
o México. Nós o propusemos em dado momento para o México, que não aceitou. Para
ser franco, o que menos gosto da AP é o nome.
–Por quê?
–Aliança soa a que se está contra outros países. Como a OTAN. Também
não acho certo separar Atlântico de Pacífico. Com Lula, Néstor Kirchner e outros
presidentes, reforçamos a integração sul-americana com todos os governos, com
independência das afinidades políticas, como o Peru de Alejandro Toledo.
Buscamos unir o Atlântico e o Pacífico mais do que separá-los. Estive presente
em Asunción quando se criou o Mercosul em 1991. Depois, já mais perto da Cúpula
de Ouro Preto de 94, surgiu uma tendência a buscar um acordo separado com o
NAFTA. Mas quero terminar de responder a sua pergunta: Por que integraríamos a
AP se não estamos no Pacífico? Por que dar essa volta se no nível sul-americano
já temos um acordo, a Unasul? Por que aceitar regras de comércio e serviços que
não nos convêm?
–O senhor integra hoje um organismo da ONU sobre saúde. Que efeito
negativo teriam as regras comerciais usadas no TPP nesse setor?
–Já participei de várias comissões criadas pelo secretário-geral
da ONU sobre o Ebola e sobre o acesso a medicamentos. Essas regras criam mais
restrições às possibilidades de ação autônoma dos países em desenvolvimento.
Aumentariam as condicionalidades para produzir genéricos e os preços
aumentariam. A Argentina tem uma indústria importante. Seria prejudicada.
–O livro que o senhor apresentará fala de uma política “ativa e
altiva”.
–Não apenas ter uma visão reativa ante a agenda internacional, mas
também ajudar a criá-la. Não aceitar coisas que nos são impostas e não
correspondem a nossos interesses. A visão contrária é a que pede um Brasil
modesto, o que na verdade significa um Brasil que se desentenda da solução de
grandes problemas internacionais. O Brasil é mais forte com a integração – não
há dúvidas quanto a isso – mas ao mesmo tempo não devemos desconhecer que somos
o quinto país em população e território e o sétimo em economia. Não podemos
estar ausentes nos grandes problemas internacionais. Seria uma posição
subalterna. A gente não pode se ocultar da globalização. O problema é como
estar nela. Uma variante é a passiva. A outra é ser um país ativo na OMC, na
FAO, na OMS, na América Latina, nos BRICS, na integração com os países árabes
ou no G-20 financeiro, onde com a ajuda da Argentina e da Turquia conseguimos
alterar as cotas dentro do FMI e do Banco Mundial. A criação do banco e do
fundo de contingência por parte dos BRICS demonstrou que as alternativas são
possíveis.
–O senhor já tem uma prospectiva do mundo após o Brexit?
–Para começar haverá uma negociação mais difícil entre a Europa e
o Mercosul, porque o Reino Unido era uma força que facilitava a nosso favor a
liberalização comercial. Ao contrário da França. De modo geral, já estamos
vendo uma grande turbulência nos mercados internacionais e existe a
possibilidade de que isso aprofunde tendências recessivas ou de não recuperação
das economias europeias. Mau sinal, pois a demanda dos países da UE é
importante para nós. Preocupa-me também a tendência a um nacionalismo que não é
o nosso, que seria um instrumento de desenvolvimento, mas sim uma volta ao
passado no sentido de extremar diferenças e interesses locais.
–O acordo entre o Mercosul e a UE não é uma ALCA com a Europa?
–Não. A ALCA tinha uma visão ideológica de como deveria ser o
mundo. Por isso é difícil, embora não impossível, uma negociação com os Estados
Unidos. Com a UE não discutimos sede de resolução de controvérsias nem
propriedade intelectual. Apenas formas de acesso a mercados.
–Embaixador, se alinhavarmos fenômenos diversos como a crise na
Venezuela, o afastamento de Dilma no Brasil e o triunfo de Macri, o que
aconteceu na América do Sul?
–Falemos também de algo positivo como o acordo de paz na Colômbia.
No final ficou demonstrado que o diálogo era necessário. Não podíamos intervir,
mas sem dúvida podíamos facilitar as condições para um diálogo que conduzisse à
paz. E então eu me pergunto: Se foi possível um diálogo entre o governo
colombiano e a guerrilha das FARC depois de tanta violência, como não vão ser
possíveis outros diálogos em outros países?
–O senhor é daqueles que pensam que a nova situação na América do
Sul é um produto da influência dos Estados Unidos?
–Tento não ficar com teorias conspirativas, embora possa dizer,
imitando um humorista brasileiro, que o fato de não ser paranoico não quer dizer
que não me persigam. Cometemos muitos erros. No caso do Brasil, o sistema
político privilegia aqueles que têm muito dinheiro e induz à corrupção. Está
certo investigar, mas deve haver neutralidade. Dinheiro demais, partidos
demais: má combinação. É preciso mudar o sistema político para um mais racional
e compatível com os interesses do povo. De modo geral eu diria que houve vários
fatores que já não estão. Todos os nossos países aproveitaram o boom do
crescimento da China e agora vivemos a situação contrária. Voltamos a Raúl
Prebisch e sua teoria da deterioração dos termos de intercâmbio. Isso leva a
turbulências. Uma coisa é desenvolver uma política social de distribuição nesse
contexto e outra é quando as classes ricas sentem que vão perder muito dinheiro.
No caso do Brasil também acontecem algumas coisas estranhas: espionagem na
Petrobras, no setor de energia nuclear, no sistema de promoção de exportações e
no Banco Nacional de Desenvolvimento. Falo da utilização da investigação
judicial, porque um Poder Judiciário independente é importante sobretudo se
atuar de forma neutra. Preocupa-me um Brasil com sua empresa petrolífera
debilitada, com sua energia nuclear em xeque e com fragilidades importantes nas
empresas de construção de obras públicas ou nos instrumentos de promoção de
exportações.
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