Como a Lava Jato transformou boato em acusação de crime no caso do sítio de Atibaia

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O bairro do Portão, em Atibaia, não esquece os dias agitados em que carros da Polícia Federal passavam em alta velocidade pela estrada Clube da Montanha, na direção do sítio Santa Bárbara.

“O povo dizia que iam prender o Lula, mas ninguém aqui tem certeza se o sítio é do Lula. Uns dizem que sim, outros que não. Vá saber quem fala a verdade?”, comenta Emília Fortunato Dias, que foi dona do depósito de material de construção onde os responsáveis por uma reforma na propriedade fizeram compra, em 2014.

Ela e o pai já tinham vendido o depósito quando as compras foram feitas, com pagamento em dinheiro. O depósito, em dificuldades financeiras, já foi fechado e tem o antigo estacionamento tomado pelo mato.

Perto dali, na padaria Iannuzzi, o gerente Gesuldo lembra como ajudou os procuradores da república na investigação sobre o sítio.

“Foi mais ou menos há três anos, os procuradores sentaram em uma mesa da padaria e me perguntaram se eu tinha visto Lula e a família por aqui. Eu disse que não”, conta.

Mas não era verdade, segundo ele.

Ele teria comentado com o patrão que tinha sido abordado pelos procuradores, e este sugeriu que falasse o que sabia, só não podia ter a imagem gravada em vídeo.

“Eu telefonei para o número que tinham me deixado. Liguei e contei que a dona Marisa vinha à padaria”, diz.

Ele não sabe precisar a data, mas diz que foram muitas vezes. Parava um carro preto — Fusion ou Ômega — e descia o motorista, que comprava pão, mortadela Ceratti e café em um copo descartável.

Levava o café para o carro. Segundo ele, Dona Marisa descia para fumar, tomava o café e depois ia embora.

O sítio Santa Bárbara fica a cerca de três quilômetros dali, em uma estrada que começa à esquerda da rua da padaria (sentido São Paulo), em frente ao mercadinho Jandira.

“Eu só soube que era a ex-primeira dama quando uma pessoa me disse que era ela”, diz. Gesuldo relata, com aparente satisfação, que, em fevereiro deste ano, foi chamado como “testemunha do Sergio Moro”.

Ele foi a um prédio do Ministério Público Federal em Bragança Paulista, 30 quilômetros distante, e prestou depoimento por videoconferência.

O que Gesuldo diz, e foi recebido pelo Ministério Público Federal como uma grave denúncia, é a confirmação de que a família de Lula frequentava o Sitio Santa Bárbara.

Sim, mas e daí?

No roteiro traçado pelos procuradores da república para colocar Lula no centro de uma grande organização criminosa, o sítio seria propriedade oculta do ex-presidente.

Ele teria recebido o Santa Bárbara como propina pelos contratos milionários que a Odebrecht e a OAS mantinham com a Petrobras.

É uma história que ganhou as páginas da velha imprensa, muitos minutos (talvez horas) do Jornal Nacional, mas não encontra amparo em provas.

Os moradores mais antigos do bairro Portão lembram que o sítio foi do senhor Gastão, que, depois, o vendeu ao casal Adalton e Neusa Emílio Santarelli, donos de um loja na praça da Sé, em São Paulo.

Foi Adalton quem contratou para trabalhar como caseiro do sítio Élcio Pereira Vieira, que ganhou o apelido Maradona quando veio de Brumado, na Bahia, para se juntar à família que trabalhava na região.

“Ele é bom de bola e deram este apelido a ele logo que começou a jogar nos campos aqui da região”, conta um morador do bairro.

Maradona não dá entrevista nem atendeu à campainha quando estive lá, na quarta-feira, 25 de julho.

Colegas peladeiros contam que ele ficou arredio à imprensa depois que viu como o Jornal Nacional distorcia a notícia do sítio. “O que ele via na TV não tinha nada ver com o que via no sítio.”

Também se escandalizou com o vazamento de algumas fotos para a TV e para a revista Veja, em que aparece ao lado do Lula.

Em uma das fotos, está com a mãe.

“Eram coisas pessoais do cara. O que isso tem a ver com a história do sítio?”, conta um vizinho.

Maradona começou a trabalhar e a morar no Santa Bárbara em 2005, cinco anos antes da propriedade ser vendida.

Para Lula?

Celeste, dono de uma loja de material de construção no bairro, diz que muito antes da Polícia Federal aparecer por lá havia o boato de que o sítio era de Lula, mas, como conhecia o Maradona, perguntou a ele: O sítio é do Lula?

“Ele respondeu que não, era de outra pessoa, acho que Fernando”, disse. E foi logo avisado: “Eu nunca apoiei o Lula, nunca votei nele, mas acho essa história muito estranha”.

Celeste segue na conversa, recusando gravação, e diz que, hoje, com a queda no movimento do comércio, começa a perceber que Lula faz falta. Não em Atibaia, onde nunca o viu, mas como presidente da república.

“Ele (Lula) é um vendedor, sabia como promover o Brasil. Faz falta um líder como este. Nunca pensei que fosse dizer isso: mas faz falta”.

Celeste é primo de Gesuldo, o gerente que ganhou destaque por dizer que viu Marisa na padaria. E fiz a pergunta a Gesuldo: Lula é dono do sítio?

“Não sei, não dá para afirmar. Hoje, quando você vê a internet, parece que tudo começou a inverter. O bandido agora é o Sergio Moro”, afirmou, sem esconder que admira o juiz de Curitiba.

Se o Ministério Público Federal insistir na tese de que Lula é dono do Santa Bárbara, vai repetir a mesma farsa do triplex do Guarujá.

O antigo dono do sítio confirmou, em depoimento, que vendeu a propriedade a Fernando Bittar e a Jonas Suassuna, que são amigos do filho de Lula, Fábio, com quem já tiveram negócios.

No caso de Bittar, o dinheiro usado para a compra saiu de uma poupança do pai, Jacó, antigo amigo de Lula, e foi para a conta do filho e, daí, para a conta de Adalton, proprietário anterior.

Jonas Suassuna entrou na história porque Fernando e Jacó não tinham dinheiro para comprar toda a área, que inclui uma reserva de mata.

Jonas, que é rico, comprou a área de mata como investimento, e para atender aos amigos. Eles não queriam que, para chegar à área de mata, se fizesse uma estrada de acesso cortando o sítio.

No cartório, havia duas matrículas para a propriedade. Uma era da área onde ficava a casa, a piscina e o açude. A outra matrícula era de mata.

É o que contam os depoimentos e os documentos juntados no processo.

E Lula?

Ele está no centro desta história, mas não como proprietário. Nem como proprietário oculto.

Quem acompanhou de perto a transação conta que o sítio foi comprado para satisfazer dois interesses: Fernando Bittar procurava uma área de lazer para comprar, com recursos que o pai lhe transferiria, talvez como antecipação de herança — sobre isso, não há informação no processo.

Jacó Bittar, pai de Fernando, sofre de Mal de Parkinson e estava em crise de depressão quando foi chamado por Lula para passar a frequentar a Granja do Torno, uma das residências oficiais da presidência da república em Brasília.

Essa convivência teria feito bem a Jacó, que, no final do mandato de Lula, teria sugerido a compra de um sítio para que continuassem a conviver nos fins de semana.

Comprado o sítio entre outubro e novembro de 2010, parte do acervo presidencial de Lula foi levado para lá.

A dificuldade para encontrar um lugar para guardar o acervo é uma encrenca, que já foi alvo de processo contra Lula.

Neste caso, o ex-presidente foi absolvido — a outra parte do acervo, bem maior, foi guardada num depósito da Granero, com os custos pagos pela OAS.

No dia 15 de janeiro de 2011, Lula esteve no sítio pela primeira vez, com a família. Fernando e Jacó Bittar estavam lá e o receberam.

Em junho de 2011, foi feita a primeira festa junina na propriedade, com enfeites que eram do acervo presidencial.

O sítio era sempre muito movimentado, com encontros e festas frequentes, o que é um traço da da personalidade de Lula: ele não gosta de ficar sozinho.

Como palestrante bem remunerado, Lula tinha recursos para comprar a propriedade e registrar no próprio nome — ela custou R$ 1,7 milhão.

Mas não fez isso porque, ao que tudo indica, a propriedade não foi comprada para ser dele. Lula tem um sítio pequeno, perto de São Bernardo, herança de família de Marisa Letícia.

Um jovem que prestou serviço na propriedade de Fernando Bittar em Atibaia conta que, uma vez, a pedido da ex-primeira-dama, cortou lenha para que ela levasse para o que ela chamava de “meu sítio”.

No sítio dela em São Bernardo, há um fogão a lenha, que ela gostava de usar. É um detalhe, um testemunho, suficiente para mostrar que Marisa separava as coisas.

“Ela me pediu para cortar lenha para ela levar para o sítio dela. Lembro bem”, afirmou.

Mas havia no sítio em Atibaia dois pedalinhos e uma canoa de alumínio que ela comprou. Sim, a família Lula usava o sítio.

Os pedalinhos, que custavam R$ 5,6 mil, foram comprados a pedido dos netos.

Uma pessoa que frequentou o sítio conta que estava lá quando os netos de Lula viram o termômetro da piscina, no formato de um patinho e pediram à avó que comprasse um patinho igual àquele, só que grande, para eles poderem passear pelo lago.

Na compra, Marisa aproveitou para comprar o barco de alumínio, usado por Lula para pescar. Onde está o crime?

Na parte mais delicada do processo, há a reforma da cozinha, feita pela OAS em 2014, quando Lula já não era presidente havia quatro anos.

É ilegal? Não.

Lula não era servidor público e, portanto, não pode se acusado de corrupção.

Mas se deve discutir essa reforma do ponto de vista ético.

As empreiteiras quiseram agradar um ex-presidente da república, como aconteceu no caso do aeroporto feito na propriedade vizinha à fazenda de Fernando Henrique Cardoso, em Minas Gerais.

São brechas que uma pessoa pública não deveria permitir, porque comprometem a independência e dão oportunidade a um escândalo, a depender do interesse da mídia.

No caso de Lula, a reforma da cozinha do sítio do amigo foi apresentada como crime grave, indício do maior esquema de corrupção da Via Láctea. No caso de Fernando Henrique, a construção do aeroporto foi ignorada.

É uma questão ética que precisa ser discutida, mas daí a imaginar que Lula se vendeu por uma reforma de cozinha ou que ele entregou contratos da Petrobras por essa reforma, feita no sítio que não lhe pertencia, é uma aberração.

Do Diário do Centro do Mundo