Por Alexandre Padilha*
O anúncio de que os EUA compraram todo o estoque de uma possível vacina para covid-19 assustou a todos. Em um dia, ficou claro o quanto a combinação do monopólio de quem registra um produto de saúde e o poder de compra de um império pode ser nocivo. Há mais de 160 vacinas sendo desenvolvidas no mundo, em tempo recorde, em um esforço coletivo para conter a doença.
Medicamentos e vacinas que surgirem contra a covid-19 devem ser bens públicos, são mecanismos não só de proteção individual, mas coletiva. Quanto mais gente tiver acesso, a vida e a recuperação econômica estarão protegidas. Não se pode haver o monopólio de um país ou de uma empresa sobre o insumo como o que foi anunciado da compra dos EUA de todas as doses das vacinas produzidas pela Pfizer e Biontech.
Vida e saúde não são mercadorias e não são matéria de venda e lucro. Não estamos defendendo que o investimento privado de descoberta de uma vacina não seja remunerado. É justo que o seja. A questão é o monopólio nas mãos da empresa que registra um produto e leva a restrição do acesso, em uma ganância absurda. A restrição do acesso está escancarada no exemplo dado, se meia dúzia de países comprarem estoques de meia dúzia de empresas estes terão vacina em tempo adequado para salvar vidas e econômica.
Quanto ao tamanho da ganância que o monopólio gera, vou dar outro exemplo também dos EUA. A empresa Gilead registrou um medicamento que mostrou alguma eficácia contra a covid19, o Remdesivir, a quase US$ 4 mil cada tratamento. Detalhe, estima-se que o custo de produção não ultrapassa de US$40, ou seja, lucro de 100 vezes, e que esta empresa recebeu mais de US$70 milhões de apoio governamental para desenvolvê-lo. Neste caso também os EUA já adquiriram o estoque de doses iniciais, a um preço menor.
Os demais países, inclusive o Brasil, por enquanto terão que pagar mais de R$20 mil o tratamento. É disso que estamos falando. O Brasil participa de três projetos de desenvolvimento de vacinas, com atuação firme de instituições públicas do SUS como a Fiocruz, o Butantan, além da Unifesp e do governo do estado da Bahia. Sim, corremos o risco de participar dos testes e não vermos as doses ou para tê-las, sermos obrigados a direcionar um montante absurdo de recursos do contribuinte de impostos para matar a sede da ganância incalculável de alguns poucos.
O Brasil é um país propício para avaliar vacinas e medicamentos para a covid-19. Tem uma explosão de casos, um sistema público e instituições de pesquisas reconhecidas internacionalmente. Além disso, no continente americano, o Brasil, tirando os EUA, é o único país que possui capacidade de produção de vacina para além do mercado brasileiro. Nossas instituições públicas, como a Fiocruz, exportam vacinas para outros países.
E isso só é possível graças a uma política que desenvolvemos no Ministério da Saúde que ao incorporar um produto o sistema público de saúde exige a transferência da tecnologia aberta da empresa privada que detinha a sua patente para um laboratório público, o que dá a garantia ao Brasil da soberania na produção. Foi assim na pandemia da H1N1, quando o Brasil se tornou, em 2010, o país do mundo que mais vacinou pessoas em um sistema público. Esta transferência ainda não está garantida nos termos dos acordos atuais, embora a China (vacina com o Butantan) já tenha anunciado que suas descobertas serão bens públicos.
A única garantia de não ficarmos reféns do monopólio no nosso país é estabelecermos que nenhum destes produtos terá monopólio de produção e venda no Brasil. O executivo federal pode fazer isso, decretar a licença compulsória no caso da covid-19. Lula fez isso no caso de um medicamento para Aids, permitindo que laboratório público em parceria com privados pudessem produzi-lo, reduzindo o seu preço e permitindo acesso pelo SUS.
Apresentamos o projeto de lei 1462/2020 no Congresso Nacional para não dependermos da decisão de Bolsonaro. Além de não podermos contar com ela, o procedimento pelo executivo federal pode durar meses, e na covid-19 não podemos aguardar dias. Se aprovada esta lei, qualquer vacina, medicamento ou produto eficaz contra covid-19 e outras emergências nacionais de saúde pública decretadas receberiam a licença compulsória. Com isso qualquer laboratório público ou privado que comprovarem qualidade no que produziram podem comercializá-lo no Brasil, abrindo a concorrência, derrubando o preço e garantindo o acesso.
Quem descobrir e registrar, além de poder ser o primeiro a vender, lógico que apresentando preço competitivo e justo, continuará recebendo royalties das demais vendas como estabelecem os acordos internacionais e as leis. É justo quem descobriu seja remunerado pela sua descoberta, mas é injusto o poder público arcar com sua ganância excessiva, é injusto pessoas morrerem ou adoecerem quando existe tecnologia desenvolvida, sempre com algum apoio público. O pl 1462/2020, apoiado por parlamentares de todos os partidos e já aprovado na comissão externa para o enfretamento da covid-19 na Câmara dos Deputados, só falta ir ao plenário agora. Precisamos salvar vidas e recuperar a economia. Para isso vacinas e medicamentos tem que ser um bem público e para todos.
A pandemia de covid-19 confirmou ao mundo o que os defensores da saúde pública sempre evidenciaram: só sistemas de saúde públicos e gratuitos podem reduzir os danos causados pela maior tragédia humana já registrada. O SUS mesmo fragilizado por Bolsonaro tem sido decisivo para reduzir mortes e o sofrimento. Mas, só um SUS mais forte, com mais qualidade podemos superar a pandemia e os demais problemas de saúde que surgiram ou cujo atendimento foi represado neste momento. Sem congelamento de recursos pela EC95, com mais instrumentos públicos e como o fim de qualquer monopólio de produtos de saúde eficazes para a covid-19.
*Alexandre Padilha é médico, professor universitário e deputado federal (PT-SP). Foi Ministro da Coordenação Política de Lula e da Saúde de Dilma e Secretário de Saúde na gestão Fernando Haddad na cidade de SP.
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