“Hoje, o Brasil é um descumpridor das suas obrigações internacionais”. Foi com essa sentença que o advogado Cristiano Zanin concluiu sua intervenção hoje (14/09), em Genebra, em evento paralelo à 39ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas). O advogado do ex-presidente Lula afirmou sua posição ao contestar as questões levadas ao evento pelo representante do governo brasileiro, Cristiano Figueroa, conselheiro da missão do Brasil perante a ONU, em Genebra.
O evento, intitulado “Direitos Humanos no Brasil: retrocessos sociais, austeridade, Sistema de Justiça e criminalização“, também contou com a presença da advogada de Lula, Valeska Martins, além de representantes da sociedade civil. Para a advogada, “o desrespeito do Brasil às suas obrigações internacionais deve ser condenado nos termos mais fortes possíveis”.
Valeska, que integrou a mesa do evento, destacou que, nos últimos anos no Brasil, as operações realizadas pelo Ministério Publico e avalizadas pelo Judiciário, como a Lava Jato, têm violado vários direitos e garantias fundamentais no país: “Não só do ex-presidente Lula, mas de vários cidadãos brasileiros”, explicou.
A advogada disse que Lula tem enfrentando, nos últimos anos, intensa perseguição política, traduzida em procedimentos processuais irregulares e exceções jurídicas. Valeska acrescentou que não existe no país “sistema de apelações capaz de interromper ou reparar essas violações”.
A advogada destacou que, no processo de condenação de Lula, as convicções de que o ex-presidente seria culpado vieram antes de qualquer comprovação de sua real responsabilidade. Portanto, Lula foi condenado “sem provas e por atos indeterminados”.
“Nenhuma prova de que Lula seria efetivamente culpado foi produzida. E todas as provas de sua inocência foram ignoradas”, ressaltou Valeska, acrescentando que, desde o início, o processo estava destinado a considerar Lula culpado “a qualquer custo”. Para isso, ações ilegais e provas ilícitas, que desrespeitam direitos fundamentais e o devido processo legal, foram permitidas.
O advogado Cristiano Zanin complementou a análise de sua colega. Para ele, “dizer que o Brasil está comprometido com o devido processo legal é ignorar tudo que está acontecendo no nosso país”. Zanin avalia que “temos hoje, no Brasil, um Estado de exceção formalizado”. Tal formalização ocorreu por meio de uma decisão que reconhece a possibilidade de implementação de medidas excepcionais no âmbito da operação Lava Jato. “Ora, isso significa, evidentemente, formalizar o Estado de exceção. Nós não estamos vivendo o devido processo legal”.
Ainda nesse sentido, Zanin argumentou que “dizer que o Brasil está respeitando direitos humanos, nessa quadra em que o país acaba de negar cumprimento a seguidas decisões do Comitê de Direitos Humanos da ONU, é fechar os olhos para a realidade”.
Valeska lembrou em sua apresentação que, em 17 de agosto, o Comitê encaminhou ao Brasil uma primeira decisão para que o Estado brasileiro garantisse os direitos de Lula, e que, em 10 de setembro, o Comitê reafirmou sua decisão, ressaltando que o desrespeito ao comunicado anterior não estava de acordo com as obrigações assumidas pelo Brasil no plano internacional. Para a advogada, “o desrespeito às decisões do Comitê trazem danos irreversíveis”.
Fenômeno mundial
A advogada de Lula explicou que o fenômeno de condenações na Justiça cercadas de procedimentos ilegais, a fim de dar vazão a perseguições e embates políticos favorecendo outros grupos de poder, é um fenômeno mundial conhecido por lawfare. Trata-se de um processo carregado de medidas assimétricas e não usuais para desqualificar os opositores, que costuma envolver a manipulação da opinião pública com o propósito de obter apoio geral às ações nocivas a determinada pessoa ou instituição.
Na análise de Valeska, “o Brasil possui uma responsabilidade internacional que não pode estar sujeita a qualquer tipo de reorientação política” ou à vontade individual de seus governantes, o que inclui cumprir as decisões do Comitê e de outras instâncias ligadas à ONU. “Isso não se aplica apenas ao Brasil, mas a todos os países” que, por boa-fé, aderem a tais compromissos.
Em sua intervenção, Cristiano Zanin registrou que o governo brasileiro trouxe à baila a argumentação de que o ex-presidente Lula não teria exaurido os recursos internos, o que poderia afastar a possibilidade de se acionar o Comitê. “Isso é uma questão que cabe ao Comitê de Direitos Humanos da ONU – e somente ao Comitê – examinar. O governo brasileiro não tem jurisdição para sindicar as decisões do Comitê de Direitos Humanos da ONU”.
Zanin lembrou que, em 2009, o Brasil confirmou o Protocolo Facultativo que dá ao Comitê a jurisdição para analisar comunicados individuais feitos por cidadãos do Brasil. “E é isso que fez o ex-presidente Lula. Fez em 2016, quando apresentou inúmeros elementos de violação às suas garantias fundamentais”. O advogado acrescentou que as decisões que foram proferidas pelo órgão da ONU levaram em consideração todos esse elementos. “E afirmaram que o Brasil deve reconhecer e manter a candidatura do ex-presidente Lula até que haja um processo justo. Evidentemente, algo que não ocorreu até a presente data”.
Zanin sublinhou, por fim, que a decisão proferida pelo Tribunal Superior Eleitoral no final de agosto, “longe de legitimar o descumprimento pelo governo brasileiro das decisões proferidas pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU, as colocam na verdade, mais uma vez, sob as luzes das obrigações internacionais que o Brasil assumiu”.
Golpe, Temer e retrocesso de direitos
Darci Frigo, representando a Plataforma DhESCA Brasil e a organização Terra de Direitos no evento, falou contra as medidas de austeridade e em defesa de sua revogação. Ele destacou que mais de 20 mil crianças poderão morrer nos próximos 12 anos no país, mortes que poderiam ser evitadas se essas medidas de austeridade não fossem adotadas. “Vivemos um momento muito difícil no Brasil e gostaríamos de mostrar aqui os retrocessos que o Brasil está vivendo”.
“Tais medidas criam uma crise ainda maior de arrecadação do Estado brasileiro, que passa a ter menos recursos para investimento, e que vão na contramão de recomendações de diversas organizações multilaterais”. Frigo afirmou que as entidades defendem uma “política do cuidado com a educação e com a saúde” que conte com mais pessoas trabalhando e cuidando da saúde e da educação das pessoas. “As políticas anticíclicas podiam garantir justamente que as pessoas pudessem ter trabalho nessas áreas para cuidar das pessoas”.
Leila Rocha, liderança indígena dos Guarani Nhadeva, relatou a luta pela sobrevivência dos Guarani no Mato Grosso do Sul e o desrespeito aos direitos dos povos indígenas no Brasil em geral. Rocha fez questão de assinalar o aumento das dificuldades, violências e perseguições sofridas após o golpe que derrubou Dilma: “O novo presidente Michel Temer não gosta de indígena, de quilombola, nem de gente pobre”.
Houve perguntas da plateia sobre o golpe ocorrido contra Dilma, à luz de uma Constituição Federal que completa 30 anos em 2018. O processo de impeachment, de acordo com o representante do governo, ocorreu todo conforme a Constituição, e foi analisado e ratificado por uma série de instâncias políticas e jurídicas.
No evento, houve também questionamentos sobre a situação das investigações do assassinato de Marielle Franco. O crime que levou a vida da vereadora do PSOL, no Rio de Janeiro, completou exatos seis meses hoje.
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