por: Marco Zero
Na reta final do segundo turno das eleições presidenciais, um grupo de evangélicos progressistas está ativo nas redes e nas ruas da Região Metropolitana do Recife para virar votos de Bolsonaro entre os fiéis. Elas e eles integram a Frente Evangélica pelo Estado de Direito – criada nacionalmente em 2016 para defender a democracia e o mandato da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) em meio ao golpe jurídico-parlamentar que levou Michel Temer (MDB) ao poder. Agora, formaram o grupo Evangélicos com Haddad.
As ações da Frente se intensificaram nesta última semana, com panfletagens no Corredor da Fé, na Avenida Cruz Cabugá, no Centro, onde há maior concentração de igrejas evangélicas. Neste segundo turno, o grupo tem distribuído quatro pequenos folhetos no formato que os cristãos estão acostumados a ler nas igrejas. Eles contêm carta assinada e escrita pelo presidenciável Fernando Haddad (13) para a comunidade evangélica.
Na carta, o candidato petista diz que, para chegar à reta final das eleições, precisou enfrentar uma campanha difamatória e de mentiras no WhatsApp, lembra sua gestão à frente do Ministério da Educação (“abri as portas para os mais pobres”), explica que sua gestão vai trazer “justiça e paz” e milhões de empregos para os brasileiros num governo pautado pelo “bem comum”.
Nas redes, a Frente produziu dois vídeos de um minuto cada para serem distribuídos especialmente pelo WhatsApp e Instagram. O primeiro, com depoimento dos próprios integrantes do movimento no Recife. Citando trechos bíblicos, eles e elas se posicionam contra a violência, pela igualdade de salários entre homens e mulheres, por mais direitos e mais empregos.
O segundo vídeo intercala imagens de entrevista de Bolsonaro, defendendo a tortura com imagens do filme A Paixão de Cristo, de Mel Gibson, na cena em que Jesus é brutalmente torturado pelas tropas romanas. O vídeo começa com texto interrogando “Você é cristão?” e, na sequência, cita trecho bíblico: “Amarás ao próximo como a ti mesmo (Mateus 22:39)”. No final, pede o voto em Haddad pela “democracia, a tolerância e o amor”.
Integrante da Frente, a jornalista Ailce Moreira, 32, explica que a linguagem é fundamental para alcançar a empatia e abrir algum diálogo com os evangélicos que votam em Bolsonaro. “Nos identificamos como pessoas que professam a mesma fé e que estamos, de alguma forma, do mesmo lado. Mostramos que entendemos o cristianismo como filosofia de vida, como lugar de salvação”.
Para Ailce, criar uma relação de proximidade com o evangélico é o primeiro passo para desconstruir o discurso de Bolsonaro. “É superimportante a gente criar mecanismos de identificação para que possamos realmente questionar e, a partir daí, desse questionamento, levar as pessoas a pensarem sobre a divergência que existe entre o discurso desse candidato e o cristianismo. Se você não entende o que rege a vida dela enquanto crença, nada do que você falar vai atingir o coração daquela pessoa”.
A peça mais elaborada produzida no segundo turno para convencer os evangélicos a rejeitar o discurso de ódio promovido por Bolsonaro é um filme de quase cinco minutos de duração, fruto de parceria entre a Associação Brasileira de Documentaristas, a Associação de Curtas-Metragistas de Pernambuco e a Frente Evangélica pelo Estado de Direito. O vídeo mostra cenas de um linchamento evitado por Jesus, mais uma vez lembrando passagem bíblica. Os agressores trocam as pedras por armas de fogo e usam máscaras do candidato do PSL.
O filme foi produzido em menos de uma semana e lançado nas redes sociais e no WhatsApp na manhã da terça-feira (23). Na mesma terça, à noite, a Frente realizou culto pela democracia e pela paz na sede do Movimento dos Trabalhadores Cristãos (MTC), na Boa Vista. O ato contou com a participação de cerca de 70 pessoas. Nas falas, ficou evidente a emoção de todos os presentes e o receio do que pode estar por vir com a eleição de Bolsonaro.
Lá estava Nena Moraes, 47, professora, arte-educadora e também integrante da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito. “O trabalho da gente é todo voltado para perguntas e reflexão. Quando a gente está na rua, a gente mais pergunta do que afirma para que o crente caia em si com as próprias respostas que ele tem na Bíblia. Não aderimos ao modelo de atuar nos cultos porque a gente não quer o culto profanado. A política tem que ficar aqui fora”, defende.
Nena conta que em algumas igrejas em São Paulo os pastores usaram até telão com vídeos explicando e defendendo o que seria o governo de Bolsonaro. “Infelizmente, 90% das igrejas estão assim, especialmente as denominações mais conservadoras. Elas foram o maior cabo eleitoral dele”, conta.
Mas Nena acha que o “escândalo das fake news” contra Haddad (financiadas por empresários, conforme denúncia da Folha de S.Paulo) está ajudando a mudar a opinião de muitos evangélicos. “Estamos fazendo um trabalho de formiguinha. Quando os abordamos, em cinco minutos de perguntas, percebemos que são inocentes, sem informação política nenhuma. Aí mostramos o que são as fake news. Eu pego o número de telefone da pessoa, adiciono no meu Zap e fico ali trabalhando… É uma luta desigual, mas não desistimos”.
VOZES MARIAS
Não é só na rua que os evangélicos da Frente têm que trabalhar para reverter votos. Assistente social de formação, Rayane Lins, 24 anos, sabe bem disso. Ela é batista, como a mãe. O pai é da Assembleia de Deus. “Minha mãe dá muito crédito ao que eu falo. Meu pai posta algumas coisas em apoio a Bolsonaro. A ele eu digo que o que está em jogo é meu trabalho e minha vida”.
Rayane integra o coletivo Vozes Marias, o primeiro coletivo de mulheres cristãs evangélicas que se intitula feminista no Brasil, fundado em 2015, no Recife. Quando fala que seu trabalho ficará comprometido com a eleição do candidato do PSL, Rayane não está exagerando. Ela faz pós-graduação e estuda justamente “as discriminações e preconceitos da bancada evangélica”. “Uma das análises de discurso que eu estou fazendo é do próprio Bolsonaro”, revela.
O Coletivo Vozes Marias tem realizado, desde o ano passado, ações voltadas para a discussão de gênero e violência contra a mulher nos espaços eclesiásticos dentro e fora das igrejas. Em 2016, realizou o curso itinerante de formação Mulher, Fé e Política, em parceria com a Universidade Católica de Pernambuco.
“Na verdade, temos mais espaço para atuar fora do que dentro. Neste momento das eleições, temos participado das manifestações de rua enquanto coletivo. Fomos para o ato #EleNão e estivemos também no evento do último sábado. Temos colocado a cara na rua para denunciar e nos posicionar diante do atual cenário político”.
Não são poucas as resistências que Rayane e os evangélicos progressistas sofrem. “Existe pouca abertura para o diálogo. Quando as pessoas se mostram abertas, a gente tenta conversar da forma mais didática possível para não afastá-las. Muitas vezes somos taxadas de esquerdistas, como se isso fosse algo ruim… Questionam a nossa fé, dizem que estamos fazendo uma interpretação errada do Evangelho”, explica Rayane.
MOVIMENTO NEGRO EVANGÉLICO
Se a discussão sobre gênero é um tabu dentro das igrejas, o mesmo ainda se pode dizer sobre a discussão de raça. Coordenador do Movimento Negro Evangélico em Pernambuco, o estudante de ciência da computação Jackson Augusto, 23, afirma que o debate sobre racismo vem ganhando corpo nos últimos anos, mas muitas Igrejas evangélicas não se abrem para o tema. “A gente consegue atingir essa galera negra, evangélica e jovem, que hoje tem mais acesso ao Ensino Superior e valoriza a questão da identidade. Evangélicos que começam a se perguntar: o que a minha fé tem a ver com isso?”.
O Movimento Negro Evangélico surgiu em Pernambuco na passagem de 2016 para 2017, com as discussões sobre o golpe e a mudança no cenário político nacional. “Os membros do movimento estão saindo nas ruas para fazer campanha. Aqui todos do nosso núcleo votam contra Bolsonaro, ao contrário do que aconteceu no Rio. A gente já trabalhou tanto com o discurso antirracista que a gente não pode tolerar pessoas que comparam pessoas negras a arrobas de animais (como fez Bolsonaro)”.
Jackson e Rayane atuam nos seus grupos evangélicos específicos, focados nos segmentos de gênero e raça, mas também fazem parte da Frente Evangélica pelo Estado de direito. “Todas as atividades que o movimento vem fazendo de fala, de atuação, a gente está fazendo em conjunto com a Frente ou com movimentos que estão ligados à campanha de Haddad. Estamos tentando atuar em conjunto nessa reta final para nos fortalecermos”, explica Jackson.
Foi dentro desse espírito de coletividade que a Frente Evangélica participou de dois atos inter-religiosos, com representantes da Igreja católica, no Jordão Baixo, no Recife, na quarta-feira(24), e em Camaragibe, na sexta-feira (26). No Jordão, houve panfletagem e celebração com cânticos na praça central.
“A gente entende que a vida eterna começa aqui. Tentamos, no contexto atual, trazer justamente isso para a igreja. Um evangelho que não se concentre nas quatro paredes e se esqueça dos problemas que existem no país. Mas que seja um evangelho atuante, político, não necessariamente político-partidário, mas político no sentido de realmente ir em busca dos direitos da população”, afirma Renata Lopes, 26 anos, formada em serviço social, e também integrante da Frente Evangélica pelo Estado de Direito.
Como Rayane, Renata sente dentro de casa a força do discurso conservador de Bolsonaro. “Minha mãe nos ouve muito. Sempre que tem uma dúvida, ela me pergunta. Meu pai, a gente precisou virar o voto porque ele queria votar nulo, mas tinha umas posturas pró-Bolsonaro. Eu e meu marido sentamos com ele e desmentimos as fake news. Disse pra ele: como é que uma campanha pode se apoiar na mentira, quando o pai da mentira é o diabo?”. Questionada pelo repórter se o voto do pai em Haddad está garantido, Renata brinca: “A gente virou o voto, mas tá sempre confirmando quando passa por ele. É 13, né, painho?”.
Fonte: Marco Zero