O Festlip (Festival Internacional de Teatro de Língua Portuguesa) nasceu com a iniciativa inédita de promover o intercâmbio cultural entre países de língua portuguesa. Depois de quatro edições, nas palavras da diretora artística Tânia Pires, o evento já é capaz de mostrar como “a força da arte pode contribuir para a união e intercâmbio” dos povos lusófonos. Além de diretora, Tânia também é atriz e conheceu vários países africanos em peças e workshops. Foi durante essas viagens que ela teve a ideia de criar o Festlip.
Tânia Pires visitou o Instituto Lula e apresentou o Festlip. Ela contou como surgiu a ideia do festival e comentou em detalhes quais as principais singularidades que ela vê no teatro de cada um dos oito países de língua portuguesa. Nas quatro edições já realizadas, passaram pelo Festlip 52 companhias, 420 atores e 20 grupos musicais. Na última edição, em 2011, o público atingiu um recorde de 30 mil espectadores.
Leia abaixo a entrevista completa com Tânia Pires.
O que é o Festlip?
O Festlip – Festival Internacional de Teatro de Língua Portuguesa – já é um movimento cultural reconhecido, que envolve todos os países falantes de língua portuguesa (Brasil, Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde, Timor Leste, Portugal e São Tomé e Príncipe), unindo Brasil, África, Europa e Ásia, em um evento que mostra como a força da arte e pode contribuir para a união e intercâmbio destes povos.
O Festlip acontece há 04 anos no Brasil, desde 2008, que como país em desenvolvimento em escala no cenário mundial, e como detentor de 80% dos falantes de língua portuguesa, tem papel determinante na sua função de preservação da língua, fomento da cultura, formação profissional, desenvolvimento social e econômico e nas relações internacionais entre estes países.
Como surgiu a ideia de fazer um festival de teatro entre os países de língua portuguesa?
Em 2006 fui convidada a participar do festival de teatro, “Ibsen Festival”, em Oslo, Noruega, com o espetáculo teatral em que eu estava em cartaz no Brasil. Ali eu tive a oportunidade de assistir montagens do mundo inteiro sem tradução, com todos interpretando em sua língua “materna”. Fiquei encantada com um espetáculo moçambicano, pois além da língua portuguesa que nos aproxima, a identificação cultural entre Brasil e Moçambique ficou clara, devido suas fortes raízes em comum. Em seguida, fui convidada para dar um seminário em Maputo sobre os direitos da mulher na sociedade e o papel das artes nesta conscientização, juntamente com o escritor moçambicano Mia Couto e a jornalista, moçambicana, Rosa Langa. Neste período começou a nascer a ideia do Festlip. Iniciei uma pesquisa de dois anos, mergulhando no universo do teatro africano, já que com o teatro português, eu já tinha um contato mais direto.
Por que a linguagem escolhida foi o teatro?
Sou formada em Artes Cênicas e Ciências Sociais. Meu olhar artístico é involuntariamente através do teatro. Nele, as trocas são imediatas e a arte se estabelece na possibilidade de transformação, interação e contato direto com o público. Até hoje, procuro uma palavra que expresse a magia deste encontro anual, tendo o teatro como a coluna vertebral. É mágico! A força da língua e de nossas raízes pela manifestação teatral é ilimitada. O Festlip congrega shows musicais, mostra gourmet, exposição fotográfica e diversos seminários sobre o tema, orquestrados pelas artes cênicas.
Além da língua, o que une os projetos que participam do festival?
São muitos os ingredientes desta união. A oportunidade de mergulharmos em culturas tão distintas, até mesmo entre os cinco países africanos que tem suas características particulares, através das artes, é um autoconhecimento.
Passamos a nos entender melhor e também compreendemos esta diversidade que se apresenta em movimento contínuo. O Brasil é, indiscutivelmente, um país referência para os nossos irmãos de língua. Ao promover este encontro em nossa casa, acabamos sendo determinantes nesta troca. A história também é um grande pilar que nos une, pois todos os países possuem características comuns, que se mostram claramente nas artes. Este é o ponto principal. As linguagens do corpo, da palavra, da imagem, da música e dos pensamentos exprimem o resultado desta união. Este é o ponto principal. Diversos desdobramentos artísticos ocorrem entre estes países decorrentes deste encontro.
Qual o critério para a escolha dos projetos participantes?
Ao realizar um projeto de Oficina Teatral Itinerante pelos oito países de língua portuguesa, em 2009, tive a experiência determinante de conhecer de perto o teatro e as manifestações culturais destas regiões. Isto me fez entender a origem de suas expressões artísticas e com certeza estabeleceu uma relação de confiança e de aproximação.
A curadoria não se estabelece por conceitos e sim por um conhecimento amplo e profundo destas manifestações. Existe uma etapa feita por curadoria direta, selecionando projetos que foram vistos ao vivo, em seus próprios países e temos a curadoria de uma bancada especializada que analisa as inscrições feitas por edital no site do festival. O Festlip já é conhecido internacionalmente e temos em média mais de 400 inscrições anuais. O objetivo é ter um conjunto de diversidade e uma vitrine artística vasta em estilos, expressões e manifestações culturais.
Qual o objetivo de vocês com a promoção de um festival que une os países de língua portuguesa? A cultura pode ser um caminho para união desses países?
A cultura não é o único caminho, mas com certeza é o mais importante para esta união. Ela é despida de pré-conceitos, julgamentos e interesses. A cultura é libertaria por essência. Os países de língua portuguesa estão geograficamente distantes, são quatro continentes buscando um elo de aproximação. O objetivo é entrarmos pela porta principal da casa. Ela estabelece uma relação livre de paradigmas, onde passamos a nos conhecer por nossas verdadeiras essências.
O festival mobiliza grandes pensadores, representantes políticos e artistas neste encontro. Nos palcos do Festlip já passaram escritores e dramaturgos como o moçambicano, Mia Couto, os angolanos, José Eduardo Agualusa e José Mena Abrantes, o cabo-verdiano, Arménio Vieira, o brasileiro Domingos de Oliveira e outros grandes nomes. Contamos o apoio chancelar da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, de todos os embaixadores destes países e representantes do Ministério da Cultura de Angola, Cabo Verde, Brasil e Moçambique, além de grandes músicos.
Ao todos mais de 120 mil pessoas já frequentaram as atividades organizadas pelo Festlip, por onde já passaram 52 companhias teatrais, 420 atores e 20 grupos musicais internacionais e nacionais.
O objetivo é esse: diminuir esta distância, nos conhecermos melhor e construir um canal efetivo de intercâmbio, valorização e preservação da nossa cultura e valores. É a arte em movimento!
Você poderia falar um pouco sobre a particularidade da cultura de cada um dos países envolvidos?
Falar destas particularidades, através do teatro, é retratar fortemente uma sociedade. Em Moçambique, por exemplo, conseguimos identificar uma leveza e um poder de “rir” do seu próprio sofrimento. No teatro moçambicano não há mágoas, mas sim um olhar para o futuro. Fica visível a presença de uma sociedade otimista, forte e pronta para recomeçar e construir.
Cabo Verde nos inebria com sua poesia, seu teatro é lírico e romântico. Sua dramaturgia é composta de beleza e superação. Quando olhamos para este país, através de sua arte, percebemos que as dificuldades não os paralisam. Cabo Verde é composto por 10 pequenas ilhas com características próprias, que renascem a cada ano da seca e de suas dificuldades geográficas. Eles possuem uma linguagem extremamente peculiar e sonhadora, onde a expressão corporal, o ritmo e a musicalidade imprimem sua marca no teatro.
Angola mostra seu vigor no teatro. Os temas permeiam sempre a catarse da guerra e as dificuldades enfrentadas pela sociedade. Na sua expressão teatral, a dor, a revolta e a luta por seus direitos são normalmente representados pelo drama.
Guiné-Bissau usa o palco para amenizar a rigidez de sua sociedade. Seus textos contam muito sobre esta luta diária pelo direito à vida. O teatro tem um propósito educacional, com o qual eles tentam transformar o indivíduo e trazê-lo para reflexão. Mesmo com o apelo didático, podemos conhecer muito de sua história. A falta de energia elétrica no país propicia uma estética lúdica de sombras e luzes de velas e o figurino é colorido na tentativa de amenizar seus corpos rígidos e temas fortes.
Em São Tomé e Príncipe encontra-se um teatro doce e de linguagem simples. Reflexo de uma sociedade que zela pela manutenção da paz. Possuem uma forte ligação com a natureza que se reflete em iluminações feitas com abacate, azeite e pavio. Roupas e cenários são ornamentados com folhas, flores e frutas. Nunca dizem “eu te amo”, mas demonstram o amor através das atitudes. É um teatro comovente e regional.
Já em Timor Leste, um povo que resistente a tantas influências geográficas, o teatro se mantém vivo, através da preservação de suas origens. A marca timorense é a espontaneidade com que eles interpretam. São atores sem vícios que levam a realidade para o palco com extrema naturalidade. Usam um português misturado com a língua local, o tétum, que por muitas vezes é incompreendido e suprimido pela forte emoção de suas representações. A fragilidade de um povo com medo de perder suas origens é preservada através da linguagem cênica, onde eles invocam seus deuses e suas crenças.
Portugal foi um dos grandes influenciadores do teatro brasileiro. Tem sua essência no teatro clássico europeu e hoje já realiza um teatro contemporâneo e eclético. Os atores são muito bem preparados e sua dramaturgia é muito rica.
É com esta receita que se estabelece o teatro brasileiro, que conjuga todas estas influências nas suas artes. Um campo neutro onde todos os artistas circulam e se expressam livremente. Ainda que cada país esteja em um tempo diferente da história do seu teatro, eles se encontram anualmente no Festlip para desenhar a história do Teatro da Língua Portuguesa.