O ex-presidente Luiz Inácio da Silva discursou hoje (3) na Câmara dos Deputados do México, onde se encontra em visita esta semana.
Leia íntegra do discurso:
“Há 12 anos, lideranças de 32 países da nossa região se reuniram aqui no México para um encontro histórico, que resultou na fundação da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos.
A criação de uma comunidade voltada para a integração e o desenvolvimento regional havia sido decidida num encontro em 2008, na Costa do Sauípe, no Brasil. Foi a primeira vez que nossos países se reuniram sem qualquer tipo de tutela estrangeira.
Além de um importante passo para a conquista da nossa soberania, a criação da Celac representou também mais uma prova da extraordinária vocação dos seres humanos para superarem diferenças e cooperarem uns com os outros.
Nós, latino-americanos e caribenhos, somos 650 milhões de seres humanos. Temos nossas diferenças socioeconômicas, geopolíticas e culturais. Falamos diferentes idiomas. Mas ainda assim nos entendemos. E escolhemos viver em paz.
É sempre importante ressaltar essa nossa opção pela convivência harmônica, sobretudo no momento em que assistimos ao desenrolar de mais uma guerra, desta vez no Leste Europeu, envolvendo a Rússia, os Estados Unidos e a Ucrânia.
Mais um momento na história da humanidade em que países tentam resolver suas diferenças por meio de bombardeios e tiros de fuzis e metralhadoras. Quando poderiam resolvê-las numa mesa de negociação, sem derramar uma gota de sangue.
É inadmissível que em plena segunda década do século 21 alguns líderes insistam em se comportar como nossos antepassados da pré-história, quando não existia diplomacia e a única lei em vigor era a lei do mais forte.
É inadmissível que um país se julgue no direito de instalar bases militares em torno de outro país. É absolutamente inadmissível que um país reaja invadindo outro país.
Guerras não levam a nada, a não ser à morte, destruição, miséria e fome. A história é a melhor professora que existe. Mas os seres humanos se comportam como maus alunos, ignorando as lições do passado.
Trilhões de dólares foram gastos em guerras recentes, antes e depois do 11 de setembro, no Oriente Médio e mesmo na Europa. Quantia suficiente para eliminar a fome no mundo e preparar o planeta para lidar melhor com as mudanças climáticas.
No entanto, essa fortuna foi usada para causar a morte direta de milhões de pessoas, no Iraque, Afeganistão, Síria, Iêmen, Paquistão e nos países que formavam a antiga Iugoslávia.
Sem contar as mortes indiretas, provocadas pela destruição dos sistemas de saúde, dos abastecimentos de água e outros serviços essenciais à sobrevivência humana. E sem contar a migração forçada de milhões de famílias, que, caso consigam sobreviver, se tornarão vítimas da extrema pobreza e da xenofobia em outros países.
E com tantas guerras e tantos trilhões de dólares, o mundo não se tornou um lugar mais seguro e melhor para se viver. Muito pelo contrário.
Cada míssil de milhares ou milhões de dólares disparado contra uma população civil, seja na capital de um país ou na aldeia mais remota, traz em seu rastro a triste certeza de que parte da humanidade insiste em caminhar para a autodestruição.
Meus amigos e minhas amigas.
Eu me lembro quando o presidente Bush tentou convencer o Brasil a apoiar a invasão dos Estados Unidos ao Iraque. Eu respondi a ele que a única guerra que interessava ao Brasil era a guerra contra a fome. Que o nosso campo de batalha era onde houvesse um único brasileiro impossibilitado de fazer três refeições diárias.
Se o presidente Putin tivesse pedido meu apoio para invadir a Ucrânia, eu diria a ele a mesma coisa. Sou e serei contra todas as guerras e contra toda e qualquer invasão de um país por outro país, seja no Oriente Médio, na Europa, na América Latina, no Caribe, na África, em qualquer lugar do planeta. Defendo e defenderei até o fim a paz e a soberania de cada nação diante de agressões externas.
A humanidade precisa entender que a única guerra verdadeiramente justa é a guerra contra a desigualdade. E no entanto, alguns seres humanos em posição de poder fazem de tudo para produzir ainda mais desigualdade e mais sofrimento.
Enquanto bilionários fazem turismo no espaço, aqui embaixo, na Terra, 900 milhões de homens, mulheres e crianças não têm o que comer. E foi contra a desigualdade e a fome que nós lutamos no Brasil desde o primeiro dia do meu mandato na Presidência da República.
Sem disparar um único tiro, nós vencemos a guerra que todos diziam ser impossível. E em 2014, o Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU pela primeira vez em sua história.
Em apenas 13 anos de governos do Partido dos Trabalhadores, fizemos uma revolução pacífica no nosso país. Conjugamos desenvolvimento com inclusão social, estabilidade econômica, respeito pleno ao Estado de Direito, aos direitos humanos e às liberdades individuais e coletivas.
Governamos para todos, mas construindo políticas públicas voltadas especialmente para os mais pobres. Garantimos a todos os brasileiros o direito de fazer no mínimo três refeições por dia.
Retiramos 36 milhões de pessoas da extrema pobreza. Geramos 20 milhões de empregos, com todos os direitos trabalhistas garantidos. Aumentamos o salário mínimo em 74% acima da inflação.
Elevamos o Brasil à sexta economia do mundo. Pagamos nossa dívida externa e emprestamos dinheiro ao Fundo Monetário Internacional.
Adotamos uma política externa ativa e altiva. Fortalecemos o Mercosul, ajudamos a criar a UnaSul, a Celac, o G-20 e os BRICS, juntamente com Rússia, Índia, China e África do Sul. Participamos ativamente de reuniões do G8, juntamente com o México.
Transformamos a Petrobras numa das maiores companhias não só de petróleo, mas de energia do mundo. Fizemos do Pré-Sal o nosso passaporte para o futuro, determinando que as riquezas extraídas das profundezas do oceano fossem destinadas sobretudo à educação.
Reduzimos em 80% o desmatamento da Amazônia. Cumprimos nosso compromisso de reduzir a emissão de gases de efeito estufa, contribuindo para minimizar os efeitos do aquecimento global.
Investimos fortemente em fontes alternativas de energia – solar, eólica e de biomassa. Temos hoje uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo.
Fomos o governo que mais criou universidades públicas na história do Brasil, abrindo as portas do ensino superior sobretudo para jovens pobres e negros da periferia. Pela primeira vez, o filho do trabalhador conquistou a oportunidade de se formar no ensino superior.
É com muita felicidade que vejo o México travar essa mesma guerra justa contra a desigualdade e a fome, e, em apenas quatro anos, conquistar importantes vitórias.
A luta contra a desigualdade é um caminho sem volta, que, além do México, está sendo trilhado hoje também pela Argentina, o Peru, o Chile, a Bolívia e Honduras, com seus governos progressistas.
Infelizmente, diante de nossas conquistas, a elite brasileira reuniu seus exércitos no parlamento, no judiciário e na mídia para desferir o golpe de 2016 contra a democracia. A presidenta Dilma Rousseff – primeira mulher a conquistar a Presidência do Brasil –, foi deposta sem que houvesse cometido um único crime.
Fui vítima do lawfare e de uma campanha midiática de difamação sem precedentes. Sofri 580 dias de uma prisão política, sem nenhuma prova de qualquer crime cometido, como hoje está fartamente comprovado. Fui impedido de disputar as eleições presidenciais, nas quais eu era o favorito para vencer em primeiro turno.
O resultado do golpe contra a democracia foi a eleição de um governo de extrema-direita, que em menos de quatro anos devolveu o Brasil a um passado que julgávamos superado para sempre.
Assistimos hoje à volta de flagelos como desemprego, fome, destruição dos direitos trabalhistas, devastação do meio ambiente, desrespeito aos direitos humanos e às minorias, ataques à democracia e entrega de nossas riquezas aos estrangeiros – inclusive o Pré-Sal.
As consequências da ascensão da extrema direita no Brasil são os cerca de 650 mil mortos pela covid, os 14 milhões de desempregados, e os 116 milhões de brasileiros que sofrem algum grau de insegurança alimentar, de moderada a muito grave. Pessoas que só conseguem comer uma vez por dia. E pessoas que simplesmente não têm o que comer.
Como se não bastasse, o atual governo vem destruindo as nossas boas relações com a América Latina e o resto do mundo. Fez, inclusive, com que o Brasil se retirasse da Celac, com o objetivo de enfraquecer esse importante organismo de cooperação entre nossos países.
E eu quero agradecer e prestar uma homenagem ao México e ao presidente López Obrador, que tem feito todos os esforços para manter a Celac forte e soberana.
Podem estar certos de que muito em breve o Brasil estará de volta à Celac e ao convívio democrático e harmônico com a América Latina, o Caribe e o resto do mundo.
Os bons ventos voltam a soprar sobre a nossa região. E tudo faremos para que, a partir do primeiro dia de 2023, o Brasil também volte a trilhar o caminho do desenvolvimento com inclusão social e combate a todas as formas de desigualdade.
Mas de nada adianta construirmos uma ilha de prosperidade cercada por um mar de pobreza, infelicidade e injustiça. Queremos uma América Latina unida, desenvolvida, inclusiva e soberana, e estamos prontos para construí-la, lado a lado com o México.
Temos uma dívida de gratidão para com o México, que no passado mais sombrio ousou conceder asilo a brasileiros, chilenos, argentinos e demais vítimas das ditaduras militares da América Sul. E que continua acolhendo exilados políticos, a exemplo do ex-presidente Evo Morales, por ocasião do golpe na Bolívia.
Quero cumprimentar o presidente López Obrador pelos esforços em conceder asilo político no México ao jornalista e ativista Julian Assange, perseguido por divulgar documentos sigilosos do governo dos Estados Unidos, referentes a atrocidades cometidas durante as invasões do Afeganistão e do Iraque.
Não por acaso se diz que, numa guerra, a primeira vítima é a verdade. Por ousar revelar a verdade, Assange tonou-se ele próprio uma vítima da guerra.
Meus amigos e minhas amigas.
O México será sempre uma peça-chave para a resistência cultural e a integração da América Latina. Nos encanta a todos o esforço de seu país para manter viva a extraordinária riqueza cultural das civilizações pré-colombianas, e para reverenciar suas raízes históricas.
Queremos fortalecer cada vez mais nossas relações bilaterais, estreitar parcerias econômicas, tecnológicas e culturais.
Brasil e México lutarão juntos pela construção de um mundo multipolar, livre das hegemonias de quem quer que seja. Precisamos de uma nova governança global, na qual todos os países tenham voz, e nenhum tenha direito a veto.
As grandes potências precisam entender que não queremos ser inimigos de ninguém. Não interessa a nós, nem ao mundo, uma nova guerra fria envolvendo Estados Unidos, China ou Rússia, arrastando o planeta inteiro a um conflito que pode colocar em risco a própria sobrevivência da humanidade.
Não somos inimigos de ninguém. Mas tampouco estaremos ao lado dos que escolhem a guerra em vez do diálogo, o ódio em vez do amor, a morte em vez da vida. Seremos sempre aliados dos que lutam pela construção de um mundo mais fraterno.
Somos independentes e livres para escolher o melhor caminho para o desenvolvimento de nossos povos. E esse caminho passa pela paz.
A Terra é fértil e generosa. Há espaço para todos plantarem, colherem e viverem em paz e com dignidade. Ninguém precisa ser mil vezes mais poderoso ou 1 milhão de vezes mais rico do que ninguém.
O ser humano tornou-se a espécie mais evoluída do planeta graças à nossa extraordinária capacidade de cooperarmos uns com os outros.
Mas ao mesmo nos tornamos também os predadores mais ferozes, hábeis na fabricação de armas capazes de destruir várias vezes o planeta, quando na verdade só existe um planeta, e é este em que vivemos.
Precisamos escolher o que queremos ser. A espécie que coopera e prospera, ou aquela que, movida pelo ódio e pela ganância, destrói tudo à sua volta.
Seres humanos não podem ser inimigos de outros seres humanos, nem das demais espécies que habitam o planeta, muito menos do planeta em si.
Precisamos de um planeta saudável, livre das tragédias provocadas pelas mudanças climáticas, pelas guerras e pela desigualdade. Queremos viver em paz, e acreditamos que o amor será sempre maior que o ódio.
Somos movidos à esperança. E, como escreveu o prêmio Nobel Octavio Paz, “Quien ha visto la esperanza no la olvida. La busca bajo los cielos y entre todos los hombres.”
Um grande abraço, com muito amor e esperança.”
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