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Luiz Inácio Lula da Silva: a política é a arte do impossível

Tradução da entrevista “Luiz Inácio Lula da Silva: a política é a arte do impossível”, publicada em 12 de julho de 2016 no Libération. 

Por Chantal Rayes

O ex-presidente brasileiro, o mais popular da história contemporânea do país, comenta a ameaça de impeachment de Dilma Rousseff, o caso da Petrobras e os Jogos Olímpicos Rio 2016. Hoje com 70 anos, poderá ser candidato em 2018.

“Vou colocar meus óculos para dar um ar de sociólogo, de analista político”. Lula, de infância pobre e escolarização incompleta, possui a capacidade de rir de si mesmo, essa outra faceta da autoconfiança. Simpático, descontraído, o ex-presidente do Brasil (2003-2011) recebeu o Libération na sede do instituto que leva seu nome, em São Paulo. Num momento em que seu partido passar por dificuldades, em que sua protegida, Dilma Rousseff, está ameaçada de ser destituída e sua própria imagem, abalada, Lula se lança numa tentativa de sedução. Entrevista exclusiva.

Estamos a um mês da abertura dos Jogos Olímpicos. Quais são suas expectativas?

Estou certo de que o Rio e o Brasil vão mais uma vez encantar os milhares de estrangeiros que virão para cá, graças ao acolhimento do nosso povo e à qualidade do que foi construído para a competição. Nossos atletas estão muito motivados. Torço todos os dias para que não haja nenhum incidente.

Que tipo de incidente?

De segurança. Não acredito que exista ameaça terrorista no Brasil, que é um país fraterno e pacífico, mas tenho certeza de que todas as precauções foram tomadas.

Em dois anos, e graças ao seu governo, o Brasil terá recebido as duas principais competições esportivas do mundo, o Mundial de Futebol em 2014 e os Jogos Olímpicos. Qual foi sua estratégia diplomática?

O Brasil deve agir como um grande país, capaz de organizar eventos como estes. Porque, mesmo com defeitos, essas competições são a oportunidade para fazer a propaganda do país, mesmo se elas mostram também nossos problemas. Não temos que ter medo disso, não temos que tentar esconder nossos pobres, tirá-los da rua, como alguns fazem [alusão à prefeitura do Rio, que removeu favelas, oficialmente, para realizar obras para a olímpiada, N.R]. O governo brasileiro não teve uma participação decisiva para trazer a Copa do Mundo ao Brasil; foi a Fifa e a Confederação Brasileira de Futebol que se entenderam. Era a vez da América Latina de organizar a copa [segundo o sistema de rotatividade da Fifa]. Era importante que o mundial voltasse ao Brasil, que ganhou cinco vezes o torneio e não o organizava mais desde 1950.

Para os Jogos Olímpicos, entretanto, o governo fez campanha…

Sim. O Brasil já tinha perdido três vezes [Brasília já havia se candidatado para os Jogos Olímpicos de 2000 e o Rio, para os de 2004 e 2012]. Desta vez, tínhamos que ganhar. A cada vez que ele encontrava seus homólogos, Celso Amorim [Ministro das Relações Exteriores de Lula, eminência parda de sua política estrangeira] lhes falava sobre isso. Eu mesmo fiz questão de falar pessoalmente com diversos dirigentes estrangeiros, sobretudo latino-americanos, asiáticos e africanos para pedir a eles que votassem pelo Rio. O Brasil vivia naquele momento, em 2009, uma fase excepcional, histórica. Éramos “a menina dos olhos”. Nossa economia estava em pleno crescimento, sonhávamos em nos tornar a sexta economia mundial. O mundo passou a acreditar em nós. Apesar de tudo isso, ganhar de cidades como Chicago, Madri e Tóquio não foi fácil. Alguns diziam mesmo que seria impossível. A vitória do Rio foi emocionante, inédita. Foi um dos dias mais importantes da minha vida. Vi a cena em Copacabana, o povo chorando de alegria. Foi maravilhoso.

Mas não havia outras prioridades para um país ainda em desenvolvimento?

Isso daria na mesma que dizer que os Jogos Olímpicos e o Mundial só podem ser realizados nos Estados-Unidos, na França ou na Alemanha! Ora, sua realização não pode ser exclusividade dos países ricos, que deveriam, aliás, ajudar financeiramente os países pobres a receber esses grandes eventos. Essas são oportunidades para desenvolver um país, receber investimentos e pôr em andamento novos projetos. Conquistar os Jogos Olímpicos foi extraordinário para o Brasil, justamente porque há ainda muito a ser feito. Nós pudemos angariar investimentos que não teriam existido de outro modo.

Que herança os Jogos Olímpicos deixarão?

Vão deixar um legado extraordinário para o Rio, legado esportivo e em infraestrutura de transportes. É importante que, uma vez acabada a competição, os governantes atuem para que o patrimônio edificado seja de benefício de toda a população. O governo federal colocou muito dinheiro nos Jogos Olímpicos. Há uma grande ingratidão da parte do prefeito do Rio, Eduardo Paes, à presidenta Dilma Rousseff, de quem ele apoia o impeachment.

O Brasil vive hoje uma profunda crise econômica, social, política e moral. Em que medida seu partido, no poder nos últimos treze anos, endossa sua responsabilidade nisso?

A crise está por toda parte, o Brasil não podia ser poupado. Os Estados-Unidos não tiveram a taxa de crescimento econômico esperada. A China desacelera. A Europa está em crise por causa do Brexit e dos refugiados. Ninguém quer receber os pobres. Entretanto, são os países ricos que fomentam as guerras e fabricam as bombas. Estes mesmos países, que sempre defenderam o livre-comércio, foram os primeiros, em 2009, a colocar barreiras protecionistas quando se considerou liberalizar o comércio para lutar contra os efeitos da crise financeira. A crise no mundo é também de natureza moral, e não somente econômica ou política. No Brasil, existe um processo de luta contra a corrupção [investigação intitulada de “Lava Jato”, «lavage express», sobre os desvios de dinheiro da gigante petroleira Petrobras, para beneficiar partidos políticos] que nosso governo favoreceu. Pois fomos nós os que mais investiram na formação da polícia federal e na instância de controle da CGU [Controle Geral da União]; nós os que concedemos a mais ampla autonomia ao Ministério Público, para além mesmo do que prevê a Constituição. Minha única crítica é que a justiça parece às vezes estar mais preocupada em aparecer nas capas dos jornais do que em investigar corretamente. Mesmo se a pessoa é absolvida, no fim, pelos tribunais, ela terá sido condenada pela opinião pública.

No plano econômico, quais erros vocês cometeram?

No final do primeiro mandato da Dilma Rousseff [reeleita no fim de 2014], o desemprego estava ainda bastante baixo [6,5% na época, contra 11,2% no fim de abril]. Ela tinha conseguido manter o emprego juntamente com as políticas sociais. Mas era preciso continuar a investir. Só que os caixas estavam vazios. Dilma reconhece que sua política de exoneração fiscal das empresas, que reduziu a arrecadação fiscal do Estado, foi longe demais. Entre 2011 e 2015, o Estado renunciou a uns 500 bilhões de receita (130 bilhões de euros). E, o que é grave, sem nada exigir do patronato. Os investimentos necessários para a criação de empregos não foram realizados. Após a reeleição da Dilma, houve uma forte crise política que paralisou a economia. Os patrões perderam confiança, os bancos não emprestavam mais. Dilma não conseguiu aprovar no Congresso medidas que acreditava serem necessárias. Para reequilibrar as contas, ela tentou reduzir despesas, mas a Câmara dos Deputados foi no sentido contrário, aprovando leis para aumentá-las! A Câmara pareceu apostar na crise, até que surgisse a ideia do golpe [«putsch», em português do Brasil]…

Michel Temer, então presidente interino, é um putchista?

Foi a Câmara dos Deputados que deu o primeiro passo em direção ao golpe, julgando admissível o processo contra Dilma [ela é acusada de ter aumentado as despesas do ano de 2015 sem o aval do Congresso e de ter adiado pagamentos aos bancos públicos para mascarar a amplitude do déficit orçamentário]. Ficou então claro que se tratava de um julgamento estritamente político, pois a vítima não cometeu crime de responsabilidade, necessário para desencadear um processo de impeachment. Em um regime parlamentarista, perder a confiança no governo seria aceitável. Mas no regime presidencialista, que é o nosso, isso não é possível. Foi, em seguida, a vez do Senado de realizar a segunda etapa do golpe, aceitando julgar alguém que não cometeu crime de responsabilidade. A partir dali, Dilma foi suspensa na espera de seu julgamento. Foi então que aconteceu o golpe de Michel Temer. Ele é um constitucionalista, ele sabe que não há crime de responsabilidade. Enquanto presidente interino, ele deveria ter reunido os ministros da Dilma e ter se contentado em coordenar políticas que já estavam prontas. Mas ele agiu como se o processo de impeachment já estivesse concluído, limando desde o ministro da economia até o rapaz que servia o café. É como se você me emprestasse sua casa durante as férias e na sua volta eu a tivesse vendido. Como se a Dilma não existisse mais. Como se o Temer nunca tivesse feito parte do governo dela, enquanto que foi seu vice-presidente por cinco anos. Ele participava das reuniões, discutia com a presidente, com os ministros. E hoje, daria até para dizer que é alguém de fora, que veio para desfazer tudo. Ele se mostrou muito apressado, deveria ter sido mais prudente. Muita coisa ainda pode acontecer.

Você acredita, então, na volta da Dilma?

Se não acreditasse, não faria política. O processo permite seu retorno [em 12 de maio, o Senado suspendeu a Presidenta por um período máximo de seis meses, mas ela pode retomar suas funções se for absolvida]. Dilma depende somente de seis votos [para escapar do impeachment]. Não é difícil de consegui-los.  

Mas se ela voltar ao poder, seus adversários a deixarão governar?

A política é a arte do impossível. Acredito na democracia, na capacidade de persuasão. Para que o Brasil reencontre sua credibilidade no mundo, é preciso reestabelecer o mandato daquela que foi eleita democraticamente por 54 milhões de brasileiros.

Você se arrepende de tê-la designado como sua sucessora, como afirma o ex-presidente José Sarney em uma escuta telefônica?

Sarney me ligou para desmentir isso. Não somente eu designei a Dilma, como também a designei de novo para que pudesse ser reeleita e não me arrependo. É uma companheira de grande valor, de grandes qualidades. Contribuí para que fosse eleita e reeleita. Confio nela. Quando se governa, as decisões tomadas não alcançam sempre seus objetivos. Desde o início, disse que seu sucesso seria o meu e que seu fracasso seria o meu também.

E como ela fracassou, você fracassou também…

Não se pode dizer que ela fracassou, porque ela não pôde terminar seu mandato. Faltavam ainda três anos, ela poderia fazer muita coisa. Desde meu tempo de sindicalista, digo que quero ser julgado no último dia do meu mandato. Em 2006, no fim do meu primeiro mandato, alguns diziam que não seria reeleito. Ora, tive 62% dos votos. Meu segundo mandato foi infinitamente melhor que o primeiro. Terminei com 87% de aprovação e somente 3% de desaprovação, algo jamais visto na história do país. Mesmo meus adversários o reconhecem.

No fim do seu primeiro mandato, Dilma foi avaliada pelos eleitores que a reelegeram, apesar dos ataques da imprensa e das elites políticas e econômicas. Ela estava tentando impulsionar a economia. Se as medidas de austeridade eram boas ou não, são outros quinhentos. Ela tentou. Mas os partidos que estão no governo hoje se comportaram de maneira irresponsável, não a deixaram governar. Tiraram proveito da grave situação política e da recessão econômica, derrubaram-na porque tiveram medo de seu sucesso. Ela poderia conseguir e poderia fazer alguém se eleger na sua sucessão.  

Você será candidato em 2018?

Vamos ver. Tenho 70 anos. A idade é implacável. Preciso ver em que condições estarei. Daqui até lá, espero que as jovens esperanças da política despontem. Já fui presidente. Mas se existir um risco de se colocar em questão nossas políticas sociais, me reapresentarei.  

E esse risco existe?

Sim. O Brasil tem que entender que os pobres são a solução dos nossos problemas econômicos. Se você der 100 dólares a um pobre, ele não vai depositá-lo no banco, ele não vai investir nos títulos do tesouro. Ele vai correr ao supermercado para comprar o que comer. É o que fizemos com o Bolsa Família, com o crédito da agricultura familiar e com o programa do microempreendedor individual [para permitir aos trabalhadores autônomos que regularizassem sua atividade]. Quando se coloca um pouco de dinheiro nas mãos de muitos, impulsiona-se o comércio, que por sua vez, impulsiona a indústria e, finalmente, o desenvolvimento. Não é preciso ser economista para saber essas coisas. Aliás, isso é o que os economistas sabem menos. Eles preferem se preocupar com que pensa o FMI ou o Banco Mundial. A crise não se resolverá até que se compreenda que uma microeconomia forte está na base de uma macroeconomia saudável. Mas se cortar os gastos públicos, em especial os sociais, se se reduzir os salários, o país se enfraquece. As pessoas que deram dois passos adiante voltam à estaca zero. Não acredito nesse modelo econômico.

É o modelo de Temer, o atual presidente interino?

É que está se fazendo no mundo todo.

Por que a esquerda não consegue se mobilizar suficientemente para resistir ao que taxa de “putsch”?

O problema não é se mobilizar. No fim da ditadura, em 1983, colocamos um milhão de pessoas nas ruas para pedir a volta das eleições diretas, e perdemos. Não existe milagre. Faltam seis votos para escapar do impeachment. É preciso falar com estes senadores, ver sob que condições eles votariam pelo retorno de Dilma. Só ela pode falar com eles. Ela deve olhar nos olhos deles e dizer o que pretende fazer se voltar ao poder.

Os principais partidos brasileiros, dos quais o seu, o Partido dos Trabalhadores, estão implicados no caso de desvio de dinheiro da Petrobras para financiamento de campanhas eleitorais. Por que o seu partido, que se propunha a fazer política de um modo diferente, acabou por aderir aos métodos da direita?

Deixe eu dizer uma coisa para você sobre a Lava Jato. A delação premiada, que permite uma revisão da pena em troca da colaboração com a justiça, foi introduzida para que os acusados confessassem seus delitos. Agora todo mundo diz ter financiado campanhas eleitorais com propina [para se beneficiarem de uma redução de pena]. O que faz acreditar que não há dinheiro limpo nas campanhas. Ora, as empresas que financiam as campanhas certamente não preveniram os partidos que elas lhes davam dinheiro de corrupção. Nenhum patrão foi ver um tesoureiro de partido para dizer: “Esse dinheiro aqui, que é limpo, não te dou, mas esse aqui, que é sujo, deixo para você”. Iremos assistir em outubro à primeira eleição sem doação de empresas, que não podem mais contribuir com o financiamento de campanha eleitoral. É uma medida imposta recentemente pelo Supremo Tribunal Federal e defendida há muito tempo pelo PT. O partido vai voltar à experiência de seus primórdios: vai precisar vender camisetas, bandeiras e estrelinhas [símbolo do partido], como fazia nos anos 80.

Dizem que os caixas do PT estão, entretanto, bem cheios, graças à Petrobras…

Se os caixas estão cheios, vai ser fácil para o fisco saber. Para arrecadar fundos, todos os partidos fazem a mesma coisa. Eles não vão se encontrar com os desempregados, não vão às favelas. Pedem dinheiro a quem tem, isto é, aos donos de empresa. É por isso que o PT defende o financiamento público das campanhas. Uma reforma política profunda é necessária.

Por que você não colocou seu prestígio a serviço desta reforma quando estava no poder?

Em treze anos, propusemos vários projetos de reforma [ao Congresso]. Mas a classe política, que teme por sua sobrevida, não deseja mudar as regras do jogo. É por isso que disse, em 2004 ou 2005, que era preciso uma Assembleia Constituinte para conduzir esta reforma. Ninguém quis. Insisto muito, nas minhas discussões com os jovens brasileiros: a única maneira de mudar a política é, ainda, entrar para a política. Não serve de nada se queixar de fora.  

Em 4 de março, você foi chamado para se explicar sobre supostas vantagens indevidas que teria recebido das empresas implicadas no caso da Petrobras. A justiça é independente ou age a serviço de interesses políticos?

Enquanto cidadão e democrata, acredito na justiça. Mas assistimos a um desvio na conduta de certos membros do Poder Judiciário, coniventes com uma parte da imprensa. Eles parecem crer que se uma acusação é reiterada repetidamente na televisão, condenar alguém fica fácil. Os vazamentos são seletivos, as detenções parecem espetáculos pirotécnicos. Não se busca mais a verdade, provas, mas manchetes de jornal. Seguindo essa lógica, a justiça, a rede Globo ou a AOS [prestadora de serviços da Petrobras que teria lhe oferecido um tríplex, do qual ele nega ser o proprietário] deverão me dar o apartamento que afirmam que é meu!

Você poderia ser preso?

Não sei.

Qual é o futuro do PT, que atravessa a pior crise de sua história?

É situação do PT é realmente muito ruim. Mas você vai notar que nenhum outro partido tira proveito do seu declínio. Quando estávamos no nosso apogeu, 2010-2011, 32% do eleitorado declarava preferência pelo PT. Hoje, o partido caiu para 12%, como em 2002. Mas o PMDB [do presidente interino Michel Temer] e o PSDB [partido do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso] estão desde então estacionados no 5% ou 6%. Acredito na capacidade de recuperação do PT. O ódio e as condutas fascistas dos conservadores contra o partido vão fazê-lo se reerguer.

Talvez o próprio PT deva também fazer algo…

O partido vai ter que se explicar, todos os dias, debater, ir às ruas. Não tem que se esconder.

Durante seu governo, o Brasil exibia ambições geopolíticas e se mostrou bastante ativo na cena internacional. Hoje, o ministro interino das Relações Exteriores, José Serra, afirma que obter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, uma ambição antiga do Brasil que você defendeu, não é uma prioridade…

Para mim, a ordem geopolítica do pós-guerra não pode mais perdurar, as instituições de Bretton Woods, o FMI, o Banco Mundial estão ultrapassados. Não há explicação geopolítica para que a América Latina, a África, a Índia, também o Japão e a Alemanha não tenham assentos no Conselho de Segurança. Se ele fosse mais representativo, não teríamos tido a guerra no Iraque ou na Líbia, já teria sido criado um Estado Palestino. França, Rússia e Inglaterra se declararam favoráveis à outorga de um assento permanente para o Brasil. Mas os Estados Unidos e a China eram contra. O Conselho de segurança é um clube de amigos que não quer convidar ninguém à festa. Se o aceitarmos como está, com só cinco membros permanentes, aceitamos fazer o que querem os Estados Unidos, que obedeçamos… Me sinto mal ao ver o Brasil voltar ao seu complexo de inferioridade, se perguntar o que pensam a Europa, os Estados Unidos, a China. Quero saber o que eles pensam, mas quero também que saibam o que penso. Quero ser tratado de igual para igual. O Brasil deve ter direito a opinar sobre os assuntos do mundo. Temos um potencial que merece ser respeitado pelos países ricos.

A diplomacia foi um ponto forte do seu governo. O que retém disso?

Tenho orgulho do Brasil ter desempenhado um papel tão importante. Criamos os BRICS [Fórum que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul], o Banco dos BRICS [Banco de Desenvolvimento Alternativo], o IBAS [Fórum de Diálogo entre Índia, Brasil e África do Sul], o UNASUR [União das Nações Sul-Americanas]. O CELAC [Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos]. Saímos da ALCA [Zona de Livre Comércio das Américas], discutimos com o Oriente-Médio e aproximamos a África da América do Sul…  

Mas as negociações para um acordo de livre comércio entre o Mercosul e a UE não avançaram… Por quê?

Porque o único objetivo da Europa era o de escoar seus produtos industrializados. Não iríamos nunca nos industrializar. Continuaríamos sempre eternos exportadores de matéria prima. Eles nos venderiam carros e nós, somente soja. Queremos também exportar tecnologia, conhecimento… No G8 e no G20, os países ricos já consideravam um mecanismo para controlar o preço dos produtos alimentares, única coisa que vendem os países em desenvolvimento! Se ao invés de gastar três trilhões para salvar o sistema financeiro, os países ricos tivessem investido esse dinheiro para ajudar os países pobres a se dotarem de um parque industrial, a crise teria sido solucionada.

E as negociações acerca da mudança climática?

Nisso, o Brasil é uma autoridade moral e política. Temos as taxas mais elevadas do mundo de energia limpa (as hidrelétricas representam 80%), 12% das reservas de água doce do planeta e a maior reserva florestal do mundo. Os países ricos destruíram suas florestas e querem continuar a poluir. E falam de criar um fundo para que os países pobres não cortem mais as árvores. Queremos uma política de preservação séria, mas justa, que leve em conta o fato de que os países desenvolvidos, que poluem há muito mais tempo, têm uma dívida maior para com a humanidade. Ora, os países ricos não querem este debate. Para eles, tudo se resume à criação de um fundo. Quando ouve a palavra “fundos”, o país pobre pensa no pouco dinheiro que poderá recuperar, e todos creem que um tal mecanismo vá resolver o problema. Mas isso não vai resolver o problema.  

Qual é o desafio atual do planeta?

O de permitir aos países que ainda não se desenvolveram, que possam fazê-lo nesse século XXI. Sonho com avanços tecnológicos que viabilizem a produção de mais alimentos explorando menos terras, com que sejamos capazes de emitir menos gazes de efeito estufa, diminuir a poluição da água e dos oceanos, sem impedir o crescimento dos países pobres. Nas discussões, os países ricos acham, às vezes, que somos radicais. Ora, trata-se somente de permitir que todos vivam dignamente.  

Em que seu percurso fora do comum pôde contribuir com o sucesso do Brasil na cena internacional?

Devo este sucesso a muita gente. A Chirac e Sarkozy, a Blair e Brown, a Bush e Obama, a Putin e Medvedev, a Hu Jintao ou Singh, a todos os chefes de Estado africanos e latino-americanos. Gordon Brown falava bem de mim para todo mundo, dizia ao FMI e ao Banco Mundial que podiam confiar em mim, como se fosse um dos meus ministros! Ele foi o fiador do meu governo. Gosto muito dele. E sou muito grato ao Jacques Chirac e ao Nicolas Sarkozy, que me trataram de igual para igual. Fui o primeiro presidente do Brasil a ser convidado para todas as reuniões do G8.

Por que, na sua opinião?

Porque eu representava algo de novo na política internacional: era o único operário que chegou à chefia de governo de um grande país. Todos duvidavam da minha capacidade de governar (risos). Isso permitiu que me beneficiasse de uma grande solidariedade por parte dos dirigentes do planeta. Ainda mais porque consegui explicar bem rápido ao Bush que meu inimigo não era o Saddam Hussein, mas a fome no meu país, e que era esse inimigo que queria vencer. Depois disso, muitos dirigentes quiseram me ajudar. Ninguém gosta de pessoas que não se respeitam, os “puxa-sacos”.  

Uma lembrança precisa?

Meu primeiro G8, em Evian, no ano de 2003. Era inédito, um metalúrgico convidado para o G8… Eu era presidente fazia um mês. Em Evian, o hotel ficava protegido pela polícia e cercado de arame farpado. Pensei: “Essas pessoas, esses dirigentes do G8, não devem ser nada ‘bonzinhos’, senão, não teriam tanto medo, não teria sido preciso tantos militares e tanto arame farpado para se reunirem”. Mas avancemos. Fui de mesa em mesa cumprimentar todo mundo. Depois, nos sentamos, Celso Amorim, meu ministro das Relações Exteriores, Kofi Annan, então chefe da ONU, e eu. De repente, houve um sobressalto e todo mundo se levantou. Achei que era Deus que estava chegando… Mas, era o Bush. Disse a Celso Amorim: “Ninguém se levantou quando cheguei. Então a gente também não vai se levantar. Bush vai vir nos cumprimentar mesmo assim.” E o que aconteceu? Bush veio nos cumprimentar. 

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