O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) concedeu entrevista à agência espanhola EFE, em que renova as críticas a Jair Bolsonaro, acusando-o de cometer crimes de responsabilidade ao participar de atos e manifestações contra a democracia brasileira. Ele disse que o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM), deveria aceitar os pedidos de impeachment contra Bolsonaro. “Deveria aceitar, porque o Bolsonaro já cometeu muitos crimes de responsabilidade”, acusa.
Lula se disse preocupado com a crescente onda conservadora no país, que se aproveitou da ascensão de Bolsonaro para retomar um discurso anti-popular e com viés fascista, defendendo a volta da ditadura militar. ”Quando se nega a política, o que surge depois é bem pior do que a política”, adverte. “Foi assim que nasceu Hitler, foi assim que nasceu Mussolini, é assim que nascem os ditadores, com a negação da política, porque não existe saída melhor para o mundo do que a democracia”, disse.
Ele disse que o bolsonarismo é como um vírus. “Tem uma turma aqui no Brasil que é anticomunista, que é antiesquerda, que é antimovimento sem-terra, que é antissindicato”, constata. “Você tem uma turma assim, e isso é histórico. O que aconteceu com o Bolsonaro é que ela ganhou vida. É como se fosse um vírus que apareceu. Ele tava quieto, não se manifestava, e se manifestou”, afirmou.
A seguir, a entrevista ao jornalista Antonio Torres del Cerro, da agência EFE:
Agência EFE – Por que não existe uma união nacional entre prefeituras e os governos estadual e federal para lutar contra a Covid-19 no Brasil?
Luiz Inácio Lula da Silva – Acontece que o presidente da República não tem uma orientação, ele não estabeleceu a política correta de combater o coronavírus, porque ele não acreditava, ele preferia acreditar nas bobagens que o (presidente dos Estados Unidos, Donald) Trump falava, ele preferia dizer que o coronavírus era uma gripezinha, e que se um cara como ele pegasse, não aconteceria nada, porque ele era um atleta e que era uma bobagem, que era uma mentira, que era um terrorismo, que era uma coisa da China. O Trump, muito rapidamente, aprendeu a lição. A gente não brinca com quem a gente não conhece. Eles (EUA) brincaram com o Vietnã e perderam, e eles agora estão brigando com um inimigo pior, um inimigo que é invisível, que a gente não sabe como tratar, não sabe qual é a arma que a gente vai utilizar para enfrentar.
Então, era visível que a orientação do isolamento da sociedade fosse levada mais a sério, assim como também é visível você ter consciência de que tem uma parte da sociedade que quer trabalhar. E que, para que essa parte da sociedade que precisa trabalhar, porque trabalha em serviços essenciais para a comunidade do país, essa gente tem que ter garantia de vida, ou seja, tudo isso deveria ter sido estabelecido de forma harmônica entre o Governo Federal, os governos estaduais e os governos municipais. Para o presidente do Brasil, todo mundo que faz coisa diferente do que ele acredita vira inimigo. Então ele tem uma obsessão de que todo mundo que não gosta dele, que todo mundo que faz coisa contra ele, é candidato a presidente contra ele em 2022, e ele passa então a marginalizar.
O Estado deveria assumir o compromisso e, ao mesmo tempo, garantir que as pessoas que precisam ficarão isoladas e que as que não têm dinheiro recebam da parte do Estado a contrapartida, que os pequenos e médios empresários recebam a contrapartida, o mundo inteiro está fazendo isso.
Estamos em época de guerra (contra um vírus). Você acha que alguém perguntava pro (ex-premiê britânico, Winston) Churchill quanto que a Inglaterra estava gastando para vencer os alemães (na Segunda Guerra Mundial)?
EFE. Mas isso não custa caro e endivida um país?
Lula. Nós estamos numa pandemia, não foi uma coisa inventada, é uma coisa da natureza. Nós temos que enfrentar. Você acha que alguém perguntava pro (ex-premiê britânico, Winston) Churchill quanto que a Inglaterra estava gastando para vencer os alemães (na Segunda Guerra Mundial)? Você acha que alguém perguntava para o (ex-presidente dos EUA, Franklin) Roosevelt quanto que ele precisou gastar para intervir na Segunda Guerra Mundial, produzindo avião, navio, tanque, míssil, bomba atômica? Você acha que alguém perguntava pro Hitler quanto que ele iria gastar? Não. Nós estamos em época de guerra. Você sabe quanto que o Brasil gastou na guerra com o Paraguai? O Brasil gastou o equivalente a 11 orçamentos da época. Olha, você está produzindo dinheiro com a sua máquina, você não está pegando dinheiro emprestado, você está apenas aumentando a sua base monetária. Você está aumentando. Quando terminar a guerra, nós vamos cuidar como resolver o problema do Brasil. Eu estava lendo esses dias um estudo que eu recebi aqui. A dívida ativa brasileira é de quase R$ 2,3 trilhões, dívida que a sociedade tem com o Estado brasileiro. Desses, 48% já venceu, já não recebe mais, você tem R$ 1 bilhão e pouco. Olha, vamos atrás desse R$ 1 bilhão e pouco, vamos negociar, ou vamos rodar dinheiro, porque não vai causar inflação e não vai aumentar a dívida. É uma coisa que nós sabemos, aumentamos a base monetária, sei lá, em R$ 200 bilhões, R$ 300 bilhões, e acabou. Depois a gente vai discutir o que fazer.
EFE. A sua imagem e a do PT ficaram muito ligadas à corrupção. Como é possível persuadir eleitores como progressistas ou evangélicos?
Lula. Eu não olho pro meu eleitor como evangélico ou católico, eu não olho assim, eu olho pro cidadão brasileiro e brasileira, e trato bem os dois. Se alguns pastores ou seguidores da Igreja fizeram uma opção pelo Bolsonaro, em outro momento eles fizeram uma opção por nós. Tem muitos pastores evangélicos que são petistas, que são tucanos. Votaram no Bolsonaro porque tinha uma clima antipolítica, um clima que foi criado para eleger esse setor de direita, mas isso pode mudar daqui a dois ou três anos. Eu, sinceramente, não quero dividir a sociedade entre evangélicos e católicos, entre evangélicos e petistas, entre evangélicos e Bolsonaro, não. O Bolsonaro tem uma parte da sociedade que o apoia, que é essa parte fanática que tem qualquer partido político.
No dia em que morreu o meu neto, de 6 anos de idade, os canalhas chegaram a produzir ‘ fake news’ dizendo que a melhor notícia do dia foi a morte do neto do Lula
EFE. Um terço dos eleitores é muita gente ainda.
Lula. Todo mundo que ganha uma eleição, no primeiro ano de mandato, a pessoa tem gordura política para avançar, e o povo tem paciência. O Bolsonaro mantém uma base social mais sectária, uma base social que eu considero aquela torcida fanática de um time de futebol, aquele fanático que acredita em tudo o que vê, mesmo sabendo que aquilo não é verdade. Acredita em qualquer mentira. Ele acredita que o time dele é o melhor do mundo, que o jogador dele é o melhor do mundo, quando não é. Então você tem uma turma aqui no Brasil que é anticomunista, que é antiesquerda, que é antimovimento sem-terra, que é antissindicato. Você tem uma turma assim, e isso é histórico. O que aconteceu com o Bolsonaro é que ela ganhou vida. É como se fosse um vírus que apareceu. Ele tava quieto, não se manifestava, e se manifestou. E, agora, vai pra rua falar bobagem, provocar pessoas, xingar pessoas, fazer batucada na porta de hospital quando estão saindo pessoas que morreram, pessoas que não tem amor, pessoas que festejaram a morte do meu neto. No dia em que morreu o meu neto, de 6 anos de idade, os canalhas chegaram a produzir ‘fake news’ dizendo que a melhor notícia do dia foi a morte do neto do Lula. Eu era presidente da República, e essa gente tinha rede social com grupo ‘Morte ao Lula’. Essa gente ganhou corpo e ganhou cara, e é por isso que nós temos que combater.
EFE. Como o senhor viu essa atitude do presidente de participar de uma manifestação pró-ditadura?
Lula. Eu fico triste, porque as pessoas sabiam o que ele era, tinha uma parte da população que sabia. Ele não negava as grosserias dele, ele não negava a defesa que ele fazia da ditadura, ele não negava a defesa que ele fazia da tortura, ele não negava as ofensas que ele fazia às mulheres, aos negros, aos índios, à oposição, aos comunistas, à esquerda como poder. Ele nunca negou isso. E ele ganhou as eleições em função do clima político que foi criado no Brasil e no mundo da antipolítica, ou seja, e aí a imprensa tem uma contribuição negativa que era tentar colocar todos os políticos no mesmo saco, todos os partidos, e que nada valia nada, ninguém prestava. Quando se nega a política, o que surge depois é bem pior do que a política, foi assim que nasceu Hitler, foi assim que nasceu Mussolini, é assim que nascem os ditadores, com a negação da política, porque não existe saída melhor para o mundo do que a democracia.
Esse Congresso Nacional, que teve a coragem de cassar uma presidente (Dilma Rousseff) por conta de uma mentira inventada contra ela, não deveria ter medo de colocar o impeachment do Bolsonaro em discussão
EFE. Acredita que há ambiente para impeachment de Bolsonaro?
Lula. Eu acho que o impeachment não nasce pronto, o que nasce pronto é um requerimento. Você vai trabalhando a conclusão do impeachment durante o debate. Então o Trump teve um impeachment pedido, a Câmara (dos Representantes) aceitou, aprovou, mas o Senado não aprovou. Aqui no Brasil você começa discutindo. Eu acho que o (presidente da Câmara dos Deputados) Rodrigo Maia deveria aceitar, porque o Bolsonaro já cometeu muitos crimes de responsabilidade. Esse Congresso Nacional, que teve a coragem de cassar uma presidente (Dilma Rousseff) por conta de uma mentira inventada contra ela, não deveria ter medo de colocar o impeachment do Bolsonaro em discussão. E, na discussão, ele que prove que não está errado.
EFE. Que candidatos estão mais preparados para concorrer com o Bolsonaro? O governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), o ex-ministro Ciro Gomes (PDT)?
Lula. O candidato que está mais preparado para ganhar as eleições é o Fernando Haddad, que foi o candidato que teve 47% dos votos nas eleições de 2018. Você acha que é pouco 47% dos votos? Você acha que é pouco o Haddad ser lançado 20 dias antes das eleições e quase ganhar? E ainda ele perdeu pra ‘fake news’, pra quantidade de mentiras. O Bolsonaro não foi em debate. Você percebe? O PT sempre poderá ter candidato. O PT tem quatro governadores de estado importantes, o PT tem o Haddad, o PT tem outras personalidades. Agora, é verdade, o Flávio Dino é uma personalidade pela qual eu tenho um profundo respeito, é um governador muito atuante, é um homem de bem. O Ciro Gomes, apesar dos problemas políticos, apesar de, na minha opinião, ele estar tentando fazer um discurso anti-PT para ver se ganha votos da direita que votava nos tucanos, não vai ganhar, porque, entre votar no Ciro Gomes e votar no (governador de São Paulo, João) Doria, eles vão votar no Doria. O Ciro precisa apenas equilibrar as necessidades de saber para quem que ele quer governar.
Eu acho que nesse momento o Ciro Gomes está faltando com respeito a ele mesmo, às coisas que ele já acreditou. Eu lamento profundamente, mas não considero Ciro Gomes meu inimigo. Ele poderá ser um adversário eleitoral, vou tratá-lo com toda a deferência com a que eu sempre tratei. Eu gosto pessoalmente do Flávio Dino e acho que o PT é um partido que sempre estará na disputa. É quase que humanamente impossível uma pessoa de juízo político normal imaginar uma campanha em que o PT não tenha candidato, pelo menos enquanto o PT ainda tiver a força que ele tem.
Eu acho que nesse momento o Ciro Gomes está faltando com respeito a ele mesmo, às coisas que ele já acreditou. Eu lamento profundamente, mas não considero Ciro Gomes meu inimigo
EFE. O PT poderia apostar em uma aliança com algum representante da direita, como Doria?
Lula. O João Doria é adversário político do PT, ele é mais conservador do que o (ex-governador Geraldo) Alckmin, mais conservador do que o (ex-ministro José) Serra, então o Doria não estará nunca no projeto do PT, e o PT nunca estará no projeto dele. Eu não queria pensar em 2022, porque estou pensando em sobreviver agora com o coronavírus, mas você pode estar certo de que os setores democráticos da sociedade, os setores progressistas da sociedade, os setores de esquerda da sociedade, vão encontrar candidatura para 2022. Ou seja, a gente vai estar junto, ou desde o primeiro turno ou no segundo turno. Eu tenho certeza de que nós vamos derrotar a direita em 2022. Não existe lugar para a continuidade do fascismo, do nazismo, de pessoas que defendem o ódio, que defendem a tortura, que defendem a ignorância, continuarem governando um país como o Brasil. É por isso que eu estou disposto a brigar, é por isso que eu estou animado, é por isso que eu quero resistir ao coronavírus. Se eu não for candidato, não tem problema nenhum, eu já fui candidato muitas vezes, em 1989, em 1994, em 1998, em 2002, em 2006. Não tem nenhum problema eu não ser candidato. Eu quero readquirir meus direitos políticos, porque eu quero votar e porque eu sou vítima de uma canalhice de algumas pessoas do Poder Judiciário e do Ministério Público.
EFE. Acredita numa China mais forte pós-pandemia? Quem vai sair fortalecido?
Lula. Acho que a China sai dessa pandemia como a economia mais importante do planeta Terra, mais importante que os Estados Unidos, porque eu acho que a China é governada com mais seriedade. Outro dia eu ouvi a imprensa dizer que o presidente americano conta 11 mentiras por dia, não é possível um país dar certo com um presidente contando 11 mentiras por dia.
É preciso que quando terminar essa crise a gente rediscuta o papel do Estado, e eu acho que o papel do Estado tem que ser mais forte. O Estado tem que ser o indutor de política social
EFE. A China não é um regime democrático, e o senhor mencionou nessa entrevista que a democracia é o mais importante.
Lula. Eu cuido muito do meu nariz. Eu acho que a China é o que é, acho que os Estados Unidos são o que são. Eu sou um cidadão que acredita no exercício da democracia como regra de vida. Agora, a verdade é que a China estabeleceu um modelo político para eles, e eles estão fazendo com que dê certo. Eles estão fazendo rodízio na presidência, mas estamos discutindo é de economia. O Estado mercado não deu certo, o Estado mercado acumulou riqueza, é só pegar o Estado mercado do Macri, quando ele ganhou as eleições na Argentina, para a dívida que ele deixou pra Argentina, o que está acontecendo no Equador? Por que derrubaram o Evo Morales se a Bolívia tinha mais reserva, estava crescendo mais e tinha mais política de inclusão social? Como é que se explica essas coisas? Então, é preciso que quando terminar essa crise a gente rediscuta o papel do Estado, e eu acho que o papel do Estado tem que ser mais forte. O Estado tem que ser o indutor de política social, o Estado tem que cuidar da saúde, ser o indutor do crescimento econômico do país. Eu não quero um Estado empresarial, eu quero um Estado indutor, um Estado que decida coisas, que imponha coisas, que defina coisas de verdade, não um Estado subserviente ao mercado.
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