Mensagem de Jorge Hage ao seminário “O que a Lava Jato tem feito pelo Brasil”

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Leia o discurso completo de Jorge Hage ao seminário “O que a Lava Jato tem feito pelo Brasil“, realizado nesta sexta-feira (24), em São Paulo:

“Meus Srs e Minhas Sras,

Convidado que fui a manifestar-me nesta oportunidade a respeito das realizações e dos avanços verificados no enfrentamento da corrupção no Brasil, no período de 2003 a 2010 – durante o Governo do Presidente Lula – quero dizer-lhes, antes de mais nada, que o faço com grande satisfação, do mesmo modo que fiz, recentemente, em depoimento oficial, na condição de testemunha, em processo movido pelo Ministério Público, contra o ex-presidente, perante a 13ª Vara Federal de Curitiba.

Digo que o faço com satisfação porque assim tenho a possibilidade de, mais uma vez, contribuir para que se faça justiça ao ex-presidente Lula, por tudo o que, sob sua liderança e com seu incentivo, foi realizado nessa área, por ele que vem sendo alvo de campanha pública sem precedentes, de desqualificação e desconstrução de seu legado e de sua imagem. 

Tal campanha tem, a meu ver, propósitos políticos evidentes, constituindo-se em espetáculo de condenação pública anterior ao processo, ao contraditório e ao julgamento. E esse julgamento, todos esperamos, terá que ser imparcial e isento, com o necessário respeito às garantias constitucionais do devido processo legal, a que faz jus qualquer cidadão brasileiro.

Aliás, a regular apuração de toda e qualquer denúncia consistente, ou suspeita fundamentada, contra qualquer agente público foi uma das tônicas dos órgãos  responsáveis durante o Governo Lula, seja no âmbito administrativo-correcional, seja pelo encaminhamento à Polícia Federal e ao Ministério Público, para a investigação e a persecução judicial cabíveis. E isso, que sempre defendi, continuo defendendo hoje – seja quem for o acusado – apenas repudiando a execração pública sem processo e o atropelo às normas legais. Ao lado disso, não posso aceitar, tampouco, qualquer espécie de seletividade política na priorização do que se investiga, do que se divulga (e do como se divulga), e do que se leva ao Judiciário, com maior ou menor presteza, para julgamento. 

Pois bem, foi justamente no Governo do Presidente Lula que teve início, em nosso país, a construção de um modelo institucional capaz de investigar, detectar, apurar e punir os desvios, as fraudes, a improbidade e a corrupção. 
Foi também em seu período e no de sua sucessora, a Presidente Dilma Roussef, que se criaram as bases para o incremento do controle social sobre o Poder Público, mediante a ampliação da transparência e do acesso á informação. 

Foi nesse mesmo período que o Brasil passou a ser reconhecido pelos organismos internacionais como um país que realizava, pela primeira vez, um esforço sistemático e coordenado de enfrentamento da corrupção – corrupção que aqui campeava desde sempre, livremente, sem sequer ser investigada e muito menos combatida, salvo em brevíssimos episódios, meros espasmos sem continuidade, como as CPIs ou a Comissão de Investigação do Governo Itamar, logo extinta pelo governo que o sucedeu.

Foi no Governo do Presidente Lula, logo em 2003, que se criou a Controladoria Geral da União, em seu desenho completo, abrangendo as funções de auditoria, fiscalização, corregedoria, ouvidoria (canal de denúncias), promoção da transparência e integridade institucional. 
Foi nesse período que se iniciaram as Fiscalizações dos Recursos Federais transferidos para aplicação por Estados, Municípios e ONGs; é desse período a instituição dos Sorteios Públicos, que garantiam a total isenção política na escolha do que seria fiscalizado. E é nesse período que tem início a articulação entre as diversas instituições públicas dedicadas ao combate à corrupção –CGU, Polícia Federal, Ministério Público, COAF e tantas outras. 

Convênios de parceria foram celebrados, por exemplo, entre a Controladoria e os Ministérios Públicos de todo o país. E as Operações conjuntas com a Polícia Federal passaram a se suceder, uma após outra, desde as primeiras, como a das Sanguessugas e a dos Vampiros, até as mais recentes. E isso passou a ser incorporado ao dia a dia da população.

Mais importante que tudo, talvez, é dessa época a verdadeira autonomia que se verifica, na prática, na atuação do Ministério Público. Não me refiro à autonomia prevista apenas no papel, que estava na Constituição desde 1988, mas à autonomia real, que veio a partir da providência tomada voluntariamente pelo Presidente Lula, de indicar para o cargo de Procurador Geral da República, ou seja, para chefiar o Ministério Público, o procurador escolhido pelos seus pares, abrindo mão, assim, da prerrogativa constitucional de escolher livremente o procurador. Qual governo, antes de Lula, fez isso? Como era a escolha do Procurador Geral antes de 2003? Quantas denúncias de altas autoridades aconteceram antes de 2003? A resposta é zero, nenhuma, pois, mesmo quando alguns poucos procuradores tentavam cumprir o seu dever, tudo acabava na gaveta da PGR e nenhuma denúncia era apresentada ao Judiciário.

Essa foi uma mudança fundamental, decisiva, para o combate à corrupção no Brasil, o que é demonstrável pelos fatos, pelos números, e não enseja contestação. A partir de Cláudio Fonteles, depois com Antonio Fernando, seguido por Roberto Gurgel e, agora, com Rodrigo Janot, o Ministério Público brasileiro transformou-se completamente, tornando-se, inclusive, referência internacional, como um dos mais fortes e mais independentes do mundo. 

Sei que muitos gostariam (e há até os que tentam) reescrever a história, dar-lhe outra narrativa. Mas há situações em que isso é impossível. E esta é uma delas. 

Outro tanto se deu com a Polícia Federal, que ganhou autonomia inédita de atuação e foi fortalecida como nunca, nesse mesmo período.
Tudo isso elevou a um novo patamar o combate à corrupção em nosso país, porque só com um Ministério Público livre, autônomo, bem equipado e atuante, junto com uma Polícia Federal igualmente atuante, livre e equipada – somados a um órgão de controle como a CGU, com o qual havia permanente intercâmbio de informações e de relatórios de auditorias e fiscalizações, de um lado, e de inquéritos, do outro, e, ainda, com o COAF, a Receita, a AGU e o TCU – somente assim pôde o Poder Público armar-se para, organizadamente, enfrentar o crime organizado, cada vez mais organizado, nessa área da corrupção.

As leis que se faziam necessárias foram, também, providenciadas nesse período. E eu destaco aqui a Lei Anti-corrupção (Lei 12.846, aprovada em 2013, mas cujo Projeto é de 2010, elaborado e apresentado ao Congresso no Governo Lula). Essa lei deverá contribuir muito, a curto prazo, para a redução da corrupção empresarial (o suborno, a propina), na medida em que ela visa, por meio de incentivos, transformar o empresário no maior interessado em prevenir a ocorrência de qualquer prática ilícita que possa envolver sua empresa.  

Além dela, a Lei do Crime Organizado (Lei 12.850) e a nova Lei da Lavagem de Dinheiro (Lei 12.683), asseguraram os instrumentos jurídicos que ainda nos faltavam para esse enfrentamento.
De tudo resultou, como não poderia deixar de acontecer, uma capacidade de investigação detecção e persecução infinitamente superior a tudo o que existia antes, tornando possível a comprovação de ilicitudes que sempre se suspeitava ou sabia existir, mas que jamais se lograra comprovar. 

Em outra frente, a frente da prevenção, são também desse período as iniciativas do Portal da Transparência – ainda hoje o maior portal de governo existente no mundo para exibir todas as despesas realizadas a cada dia por cada um dos órgãos do Poder Executivo – Administração Direta, Autárquica e Fundacional – além das remunerações de todos os agentes públicos, desde o Presidente da República até o mais modesto servidor.

É também dessa época a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527), gestada no Governo Lula e sancionada já no Governo Dilma, que permite hoje a qualquer cidadão requisitar o documento que queira conhecer, perante qualquer órgão público, sem que precise, para isso, dizer sequer a razão do seu interesse.

Tudo isso, acompanhado da indispensável  e plena liberdade de imprensa, viabilizou, na prática, a efetiva participação da sociedade no controle das ações públicas, também em níveis sem precedentes em nossa história. Para quem perceba a relevância dessa participação e do controle social, para além do controle oficial, esses são marcos decisivos.

Ao lado disso, a abertura e a sistematização de um amplíssimo Canal de Denuncias, para qualquer pessoa levar ao conhecimento dos órgãos de controle qualquer irregularidade de que tenha ciência, materializou-se com a criação da Ouvidoria Geral da União, unidade da CGU, que passou a receber e analisar milhares de denúncias a cada ano, encaminhando-as aos órgãos responsáveis por sua apuração. 

E outra unidade da CGU, a Corregedoria Geral, cabeça do Sistema Federal de Correição que foi também criado no período, tornou efetiva a obrigação legal (que já existia mas nem sempre era cumprida) de apurar toda e qualquer irregularidade, fosse ela cometida por agentes públicos (servidores e dirigentes) ou por fornecedores e prestadores de serviço (pessoas físicas ou jurídicas). Ao final do período daqueles governos já somavam mais de 5.000 os agentes públicos demitidos ou destituídos de suas funções. 

Instituiu-se, também no Governo Lula, um outro mecanismo permanente para assegurar a articulação e integração dos esforços anti-corrupção e anti-lavagem de dinheiro – refiro-me à ENCCLA (Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro), que reunia periodicamente mais de 50 órgãos e entidades  públicas, de todos os Poderes, para debater, propor e elaborar propostas e projetos nessas áreas. O Ministério Público e a Polícia Federal, junto com a CGU, o Ministério da Justiça e inúmeros outros entes, integravam essa articulação, de onde nasceram muitos dos projetos depois transformados em leis ou outras espécies de instrumentos.

Evidente que toda essa movimentação inovadora e reformadora na área do combate à corrupção e da transparência pública, chamou a atenção dos organismos e foros internacionais dedicados ao tema. Daí o protagonismo conquistado pelo Brasil, a partir dessa década, em instâncias como a ONU, a OCDE, a OEA, o Banco Mundial, o BID, o UNODC, o Pacto Global, a OGP, o G-20, e tantos outros. 

A OCDE fez, no Brasil a sua primeira avaliação de um sistema de integridade institucional e convidou o país a integrar seu Comitê de Governança Pública. Em diversos de seus eventos pelo mundo afora convocava o Brasil a apresentar sua experiência. O UNODC premiou o Portal da Transparência brasileiro com seu prêmio internacional. Na formação da OGP, o Brasil foi o primeiro país a ser convidado pelo Governo norte-americano como parceiro da iniciativa, que hoje reúne cerca de 60 países.

É evidente, porém, que, apesar do quanto se fez nos Governos Lula e Dilma, ainda haveria (e ainda há) muito o que fazer. E vários dos instrumentos já ali criados ainda irão produzir seus frutos.

Entre o que de mais relevante ainda restava por ser feito, eu destaco medidas como o Estatuto da Empresa Pública e da Sociedade de Economia Mista, finalmente aprovado agora em 2016, após debates que se arrastaram por cerca de 20 anos no Congresso Nacional, para regulamentar o artigo 173 da Constituição. Essa lei permitirá, finalmente, que se exija das empresas estatais a adoção de controles internos, sistemas de auditoria e mecanismos de compliance, associados a regras de licitação e de transparência adequadas a suas peculiaridades, e que sejam capazes de prevenir a corrupção em seu interior, sem retirar-lhes a agilidade gerencial indispensável à sua atuação como empresas no mercado. 

De igual modo, medidas de natureza política e institucional como a alteração das regras do financiamento de campanhas e partidos, iniciada por recente decisão judicial do Supremo Tribunal Federal, à qual deverão seguir-se outros passos, a cargo do Congresso, para, enfim, modificar, em profundidade, o panorama dos condicionantes políticos da corrupção.

Mas o que foi feito pelo Presidente Lula não poderá jamais ser obscurecido, devendo o seu legado ser sempre respeitado e reconhecido como contribuição substantiva para o combate à corrupção no Brasil. Esse era o depoimento que queria dar aqui, neste ato público, em favor da justiça e da verdade.”