O sudanês Mo Ibrahim se declara um “homem de negócios”. Ele construiu sua fortuna ao ser um dos pioneiros ao apostar na telefonia celular na África. Hoje ele está à frente da Mo Ibrahim Foundation, que promove e premia a democracia e a boa governança nos países africanos. No dia 20 de abril deste ano, Mo Ibrahim recebeu o prêmio Africare, na capital dos Estados Unidos e fez elogios ao ex-presidente Lula, com quem já se encontrou algumas vezes.
Em seu discurso de agradecimento ao prêmio, cuja tradução o Instituto Lula transcreve agora na íntegra, Mo Ibrahim faz um sério balanço sobre os avanços e os desafios do continente africano. “Ninguém nos deve nada. Nós mesmos devemos ganhar nosso sustento”, sentencia. E chama a responsabilidade para os africanos: “A África é um continente rico e não há nenhuma razão, nenhuma, para termos famintos e pobres na África. É nossa má administração de nossas economias, a nossa má gestão de nossa política, isso é o que de fato nos está prendendo. Nós, ninguém mais”.
A FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) e a União Africana organizam nos dias 30 de junho e 1º de julho, o seminário “Novos enfoques unificados para acabar com a fome na África”, que tem apoio do Instituto Lula. Neste seminário, lideranças governamentais e organizações que atuam na África irão debater soluções conjuntas para um problema que, na visão compartilhada de Lula e de Mo Ibrahim, não tem justificativa nenhuma para continuar existindo. Para saber mais sobre o seminário, clique aqui.
Ouça o inspirador discurso de Mo Ibrahim (em inglês)
Leia abaixo o discurso completo de Mo Ibrahim traduzido ao português pelo Instituto Lula.
Estou sem palavras. E as pessoas que me conhecem sabem como isso é raro. Estou humildemente grato à Africare por sua gentileza. Para mim, é uma enorme honra poder seguir os passos de um grande homem como o presidente Lula. O que o presidente Lula fez pelo Brasil é simplesmente surpreendente. Mostra o que um presidente pode fazer para mudar seu país, de verdade. Infelizmente, Presidente Lula, você não é africano, se não teria ganhado os cinco milhões de dólares*. Mas talvez você possa vir a se candidatar nas eleições de um de nossos países e nos ajudar a sair da confusão em que estamos.
Irmãos e irmãs, é muito maravilhoso estar aqui e eu sei que foi uma noite muito longa. Por isso eu vou tentar não tomar muito do seu tempo, apenas falar algumas coisas que eu gostaria muito de dizer. A África está avançando. Não há dúvida sobre isso. Nos últimos dez anos houve um considerável crescimento econômico na África. A saúde e a educação melhoraram bastante. Os direitos das mulheres avançaram. Nós produzimos o índice [o índice de governança Ibrahim Index IIAG**], como todos sabem; nós medimos todas essas coisas nos últimos dez anos. Isso não quer dizer que já chegamos lá. A posição das mulheres em nossa sociedade ainda é inaceitável. Muita coisa ainda precisa acontecer. Embora maravilhoso, o progresso econômico não é certeza de que esteja ocorrendo desenvolvimento equitativo, crescimento equitativo. Essa capilaridade distributiva ainda não está de fato ocorrendo. Isso é importante e precisamos prestar atenção a isso. Não podemos deixar grandes parcelas de nossas sociedades para trás. E eu não gosto quando as pessoas ficam mencionando índices como o PIB e outros índices porque eles escondem muitas desigualdades às quais temos que prestar atenção.
Estamos testemunhando uma grande ascensão da sociedade civil africana e isso está mudando o jogo, de fato. É uma coisa muito importante para a África. Duas forças principais dão sustentação a essa ascensão, os jovens – metade da população africana tem menos de 19 anos de idade. É um continente de jovens e esses jovens não são como nós. Esses jovens são mais instruídos, são mais informados, estão conectados. E isso está mudando o cenário da África. Esses jovens não têm respeito por ninguém. Isso é bastante importante. A outra força é a mulher africana. A mulher africana é surpreendente. Segundo estatísticas da OIT [Organização Internacional do Trabalho], as mulheres africanas são o verdadeiro pilar da economia africana. Setenta e cinco por cento de nossa gente trabalha na agricultura e a agricultura é feita pelas mulheres, não pelos homens. Filhos, escola, comida, moradia, tudo isso é feito pelas mulheres. Talvez os homens trabalhem um pouco, mas, no geral, nós dançamos, bebemos e de vez em quando também estupramos uma mulher. Esse é um problema nosso, de fato, mas é muito importante poder ver hoje a ascensão de organizações de mulheres e o modo como a narrativa está mudando na África, algo muito importante. Eu acredito que essas duas forças, jovens e mulheres, mudarão a África. Vejam. Nós temos 54 países. Temos duas presidentas no momento. É só comparar o desempenho para ver como nos damos melhor quando temos mulheres comprometidas em papéis de liderança. Isso também é muito importante para nós.
Ainda não deixamos a selva. Ainda estamos lutando [para isso]. Mas o mapa está claro à nossa frente. A questão mais importante à nossa frente hoje é a integração econômica regional. A África não pode continuar a ser 54 países pequenos e desarticulados. Assim não chegamos a lugar nenhum. Não vamos conseguir competir nesse mundo. E ninguém nos deve nada. Temos que ganhar nosso sustento. A África é um continente rico. É um continente muito rico e, de fato, não há nenhuma razão, nenhuma, para termos famintos e pobres na África. É nossa má administração de nossas economias, a nossa má gestão de nossa política, isso é o que de fato nos está prendendo. Nós, ninguém mais. Eu odeio quando as pessoas começam a falar sobre colonialismo e eu digo que os Estados Unidos foram uma colônia. Todo mundo já foi uma colônia algum dia, mas as pessoas se levantam, sacodem a poeira e seguem adiante, e é isso que precisamos fazer na África. É incrível. Você vê um país como Cabo Verde, cujo presidente ganhou nosso prêmio recentemente. Um país sem recursos naturais, nada, e ainda assim eles conseguiram tirar o país da lista dos Países Menos Desenvolvidos, o segundo país da África a deixar a lista de Países Menos Desenvolvidos. Por quê? Porque tiveram uma boa liderança. Tiveram uma boa governança. Isso é exatamente do que precisamos e o que temos de nos empenhar em conseguir. E precisamos desenvolver esse tipo de políticas. Sem livre circulação de bens, pessoas, e capital na África, continuaremos a ser sempre paisinhos de baixa escala. É muito mais barato transportar bens da China para a África Ocidental do que transportá-los da África Oriental para a África Ocidental. O comércio intra-africano é da ordem de 11 a 12 por cento. Como podemos avançar se não temos comércio uns com os outros? Este é um mundo de gigantes. Você tem os Estados Unidos aqui, a União Europeia ali, a China e a Índia lá. Não podemos sentar à mesa, não podemos ter voz, não podemos influenciar nada se permanecemos sendo 54 países pequenos e desarticulados que não mantêm comércio entre si, que não fazem negócios entre si. Precisamos romper essas fronteiras. É ridículo. O gozado é que todos na África concordam com isso. Cada um dos presidentes africanos assinou a integração econômica regional. Todos esses presidentes formaram RECs, os órgãos regionais incumbidos de realizar a integração. E por que ela não acontece? Não sabemos. E continuamos a nos perguntar por que ela não está acontecendo. Temos toda a organização e estrutura para isso. Mesmo assim nada acontece. Onde está a carne? Onde está a comida na mesa? Por que não estamos fazendo nada? Portanto, nós precisamos parar de só falar. Mês que vem nós vamos celebrar os 50 anos da União Africana e eu sempre me pergunto: “Onde está a união da União Africana?”.
Sempre nos empenhamos em prol da governança, pela importância que a governança pública tem para todos nós. Infelizmente, parece que uma parte desse discurso nunca é ouvida. Não podemos ter boa governança, e não podemos ter boa governança pública, sem governança no setor privado também. Vejam. Quando as pessoas falam de corrupção na África, quando as pessoas falam de presidentes africanos corruptos, de líderes africanos corruptos, ninguém responde à questão: “Esses presidentes estão corrompendo a si mesmos?” Corrupção é um crime cometido por, pelo menos, dois adultos que consentem. Por que a mulher é sempre a culpada? E o cara onde está? Para cada funcionário corrupto há pelo menos uma dúzia de homens de negócio corruptos. Por que isso não vem à luz? Eu penso que precisamos também exigir boa governança empresarial, boa governança no setor privado. Isso é importante. E não se limita ao crime de corrupção. Na verdade, cinco ou seis por cento das transferências ilegais de fundos que ocorrem na África são dinheiro de corrupção. Os 95% restantes, dos quais ninguém fala, também são interessantes. São preços de transferência, corporações evitando pagar impostos na África, mispricing [precificação anômala], parte disso, claro, dinheiro do crime, e assim por diante. Há um volume bastante grande de dinheiro deixando a África ano a ano. Esse montante é dez vezes o valor do que a ajuda [financeira] que a África está recebendo. Portanto, precisamos nos perguntar o que realmente está acontecendo. Por que ninguém fala sobre isso? Há algumas centenas de bilhões de dólares saindo da África a cada ano. Para onde elas vão? O que está acontecendo? Por que não somos capazes de rastrear esse dinheiro? Por que não somos capazes de trazer essa forma de corrupção à luz? E essa forma de corrupção também é praticada por gente muito, muito honrada – os presidentes dos conselhos de administração e os executivos-chefes de nossas maiores empresas. Nós precisamos perguntar a essas pessoas: “Como vocês conseguem olhar nos olhos dos seus filhos sabendo o que estão fazendo?”. Acho que é hora de as pessoas também levantarem essas questões. Já estamos cansados de todo esse lixo, todas essas bobagens. Eles criaram a crise financeira. Vocês sentiram a dor da crise financeira aqui alguns anos atrás, que, insisto, foi, a meu ver, fruto da má governança – má governança empresarial por parte das instituições financeiras. E ninguém levantou a questão sobre qual é o dever fiduciário dos diretores dessas instituições. Não aconteceu nada. E, claro, um mau arcabouço jurídico e todos saíram sãos e salvos. Penso que é o momento de seguirmos adiante e pararmos com toda essa insanidade. Isso é essencial não apenas para nós na África, é essencial para vocês, porque pode voltar-se contra vocês. Portanto, um mundo muito mais transparente, isso é algo em torno do qual devemos nos unir e pelo qual devemos realmente lutar. Nós não somos contra os negócios. Eu sou negociante. Somos a favor dos negócios. Negócios criam emprego, criam prosperidade. Mas as empresas também precisam ser transparentes e também precisam ser honestas. E vocês ainda podem ganhar dinheiro. Não somos contra isso.
A África tem ótimos relacionamentos mundo afora. Preciso mencionar nosso amigo, o presidente Lula, que já esteve na África 38 vezes. Um verdadeiro amigo da África – 38 vezes. Uma forma maravilhosa de relacionamento. Claro, estamos desenvolvendo outras relações, com a China, com a Índia, com muitos outros povos. É bom para a África ter muitos amigos. E, claro, exigimos que nossos novos amigos no Oriente comecem de onde nossos amigos do Ocidente terminaram e não de onde começaram. Também esperamos que essas pessoas observem boas maneiras. Quanto aos Estados Unidos, os africanos estão um pouco incomodados porque o que temos testemunhado é uma retirada gradual e continua dos Estados Unidos da África que não estamos entendendo. Os Estados Unidos têm sido grandes amigos da África todos esses anos e, no momento em que a África se encontra e começa a crescer, descobrimos que os Estados Unidos estão, sendo franco, nos abandonando. Como amigos temos que ser sinceros uns com os outros. Estamos nos sentindo meio estranhos. Por que vocês estão deixando a África? Com relação ao governo dos Estados Unidos, eu não sei; mas os negócios dos Estados Unidos estão saindo. Onde quer que eu esteja na África, eu vejo empresas indianas, eu vejo empresas chinesas, empresas turcas, empresas brasileiras. É muito raro ver uma empresa americana que não seja a Coca-Cola, que, claro, sempre esteve na África, e algumas petrolíferas. Mas o negócio americano, de modo geral, está em retirada e o próprio governo americano está em retirada. Nós achamos isso muito estranho e sabe por quê? Porque achamos que lhes demos uma dádiva maravilhosa. Nós lhes demos um de nossos filhos para ir ajudá-los a seguir em frente. E que isso aconteça no mandato de nosso filho na Casa Branca é estranho para nós. Infelizmente, não tenho o telefone dele, mas se algum de vocês tiver o número, ligue para ele e diga: “Alô, seus pais dizem ‘Não se esqueça de nós.’ Amamos você muito.” E não se trata de ajuda ou dinheiro, sabemos que você tem passado por maus momentos aqui com tudo o que está acontecendo no Congresso e outras questões daqui. O que nós queremos é seu amor. Queremos um pouco de amor. Por isso, Sr. Obama venha nos dar um abraço de vez em quando. Nós vamos gostar.
Para terminar eu só quero dizer que estou humildemente agradecido por esta noite maravilhosa e pela honra com que fui agraciado por vocês. Muito agradecido. Eu não acho que mereça tudo isso, mas muito obrigado. Todas as vezes que eu for agraciado com um prêmio, vou buscá-lo. Muito obrigado.
*Mo Ibrahim cita um prêmio que sua fundação (a Mo Ibrahim Foundation) oferece a governantes africanos que tenham trabalhado em prol da democracia e das condições de vida de seu povo
** Para saber mais sobre o índice de governança Mo Ibrahim IIAG, visite: www.moibrahimfoundation.org