Enquanto Luiz Inácio Lula da Silva enfrenta instabilidade em seu Partido dos Trabalhadores e a perspectiva de julgamento, a questão de se “o melhor presidente de todos os tempos” é vítima ou vilão continua em debate.
Por: Jonathan Watts, publicado no The Guardian
Segunda-feira, 4 de julho de 2016.
Na noite em que a Câmara dos Deputados do Brasil votava o impeachment da presidente do país Dilma Rousseff, esta acompanhava o processo pela televisão com seu antecessor no cargo, Luiz Inácio Lula da Silva.
Dilma Rousseff parecia calma o tempo todo e chegou até a pedir pipoca. Mas Lula – assumidamente um homem emotivo – caiu em prantos pelo menos três vezes.
“Foi muito triste, sofri muito,” relembrou o fundador do Partido dos Trabalhadores em uma entrevista com o Guardian. “Eu vi o projeto para transformar o país desmoronando.”
Outrora uma luz de esperança por uma sociedade global mais justa, o Partido dos Trabalhadores que Lula fundou está sendo decapitado e seus avanços em treze anos de governo com a redução da pobreza, aumento do acesso à educação e impulso aos gastos com atenção à saúde estão entrando em colapso como resultado da recessão e de cortes orçamentários.
Quando deixou a presidência em 2010, Lula – como é universalmente conhecido – era o presidente mais popular do mundo, uma liderança carismática de um mundo em desenvolvimento que recém adquiria confiança e o arquiteto de um projeto democrático de centro-esquerda para reduzir a desigualdade no Brasil.
Desde então, porém, a economia deteriorou-se, os ventos políticos globais mudaram de direção – da cooperação para a competição – e uma ampla investigação anticorrupção no Brasil atingiu importantes políticos, inclusive muitos aliados de Lula.
Hoje, ele sabe que pode ser levado a julgamento a qualquer momento. O ex-presidente é alvo de ao menos quatro investigações criminais; suas ligações telefônicas pessoais foram gravadas em segredo e vazadas para a mídia; a polícia o deteve rapidamente para interrogatório. Sua sucessora, Dilma Rousseff, foi suspensa, impedida e tão enfraquecida pelo governo interino de centro-direita que, embora ela ainda seja, oficialmente, a Presidente do Brasil, amigos dela lançaram uma campanha de crowdfunding para pagar suas despesas de viagem.
A queda do governo do Partido dos Trabalhadores assumiu proporções shakespearianas, embora a questão de se Lula é vítima ou vilão continue sendo tema de intenso debate.
A questão de quem deve ser culpado divide o país ao longo de linhas ideológicas. A direita alega que Lula seria uma figura tipo Rei Lear, que teria originado a própria destruição por má gestão econômica, erros políticos e por incentivar uma política de corrupção por todo o setor estatal. A esquerda o retrata como um Otelo, um grande líder enfraquecido por traição.
Os protestos de massa realizados no começo do ano sugerem que muitos eleitores estavam cansados de um político e de um partido que deixaram de atender expectativas crescentes e que se viram envolvidos em um sistema que haviam prometido mudar.
Lula vê as coisas de modo diferente. Ele entende que a ênfase do Partido dos Trabalhadores nos pobres, em políticas de redistribuição e no aumento do gasto em educação e saúde públicas contrariou uma classe política que se acostumou a conseguir as coisas do seu jeito.
“Eu sinceramente acho que isso incomodou um monte de gente. Agora tem mais (pessoas que recém ingressaram na classe média) nas ruas, nos teatros, nos aeroportos. Uma parte da elite não quer dividir,” diz.
Os vazamentos e as investigações, como ele as vê, são parte de um complô para eliminar o Partido dos Trabalhadores e impedir que Lula concorra novamente para presidente em dois anos.
“Eu penso que há um acordo entre setores da mídia, a promotoria e a polícia para destruir minha imagem,” diz. “E tudo isso com um único objetivo: condenar o Lula. [Há pessoas que entendem que] ‘nós não podemos deixar esse homem concorrer em 2018’”.
Dado o contexto regional mais amplo de recentes derrotas eleitorais de governos de esquerda na Argentina, Venezuela e Bolívia, alguns na esquerda vão mais longe. Eles veem forças mais tenebrosas em ação, inclusive complôs da CIA.
Mas Lula descarta insinuações de que os Estados Unidos estejam envolvidos em conspirações para enfraquecer os líderes de esquerda da região. “Eu não acredito,” diz. “Os venezuelanos têm razões para suspeitar dos Estados Unidos por causa do golpe [que afastou Hugo Chávez por pouco tempo] em 2002… Mas eu penso que os companheiros na Venezuela estão cometendo um erro. Eles precisam de diálogo com todos os setores da sociedade.”
Lula foi um aliado próximo de Chávez e de Nestor Kirchner na Argentina. No começo deste ano, ele recorreu a uma metáfora futebolística para descrever os três em seus dias de glória como o “Messi, Neymar e Suárez” da esquerda latino-americana.
À diferença de seu par venezuelano, Lula, no entanto, preferiu a negociação ao confronto e recusou-se a emendar a Constituição para poder seguir concorrendo ao cargo de presidente. Em vez disso, afastou-se ao término de seu segundo mandato e permitiu que Dilma Rousseff assumisse seu lugar. “Eu já disse muitas vezes que a coisa mais importante na democracia é a alternância de poder. Eu não concorri a um terceiro mandato consecutivo. Eu não acredito em pessoas que não podem ser substituídas. É assim que as ditaduras nascem.”
Isso o deixa ainda mais frustrado pelo modo como o Partido dos Trabalhadores foi afastado do poder mesmo sem ter sido derrotado em uma eleição nacional desde 1998. Em 2014, o partido ganhou mais um mandato presidencial de quatro anos. Porém, antes da metade desse mandato, o partido foi forçado a sair.
“Eu perdi três eleições, mas respeitei o vencedor escolhido pelo povo. Mas a direita não quer esperar.”
Ele ainda não abandonou a esperança de que Dilma Rousseff possa voltar. Para sobreviver na votação final em 17 de agosto, ela precisa persuadir seis senadores a mudarem de ideia. Parece um número baixo, mas Lula reconhece que isso exigirá um enorme poder de convencimento. Embora não o diga diretamente, ele parece irritado por Dilma não lutar com mais garra.
“A Dilma precisa dizer o que vai acontecer no Brasil se ela voltar à presidência. Ela precisa dizer o que de novo ela vai fazer, como vai construir novos relacionamentos políticos. Ela tem que dizer isso. Eu não posso. Ela precisa fazer as pessoas acreditarem.”
São constantes as especulações, especialmente pela direita, sobre um racha entre Lula e Dilma. Um ex-presidente, Fernando Henrique Cardoso, disse ao Guardian que o maior erro de Lula foi sua escolha de sucessor. Outro ex-presidente, José Sarney, foi gravado em segredo dizendo que Lula ter-lhe-ia dito algo parecido. Em delação premiada, Delcídio do Amaral sugeriu que a relação entre os dois líderes do Partido dos Trabalhadores é competitiva. E, jogando ainda mais lenha na fogueira, houve a decisão do Lula de não participar de uma coletiva de imprensa de despedida para Dilma Rousseff no Planalto com outros membros da direção partidária.
Lula, no entanto, insiste em que não tem arrependimentos. “Tenho orgulho de ter indicado a Dilma e de ter conseguido que ela se elegesse,” diz.
Mas, foi Lula quem gerou as maiores paixões. Pesquisas de opinião sugerem que ele ainda é o político mais popular do Brasil, com 21% de aprovação, pouco acima da ex-ministra do meio ambiente Marina Silva, com 19%, e do candidato do empresariado à presidência Aécio Neves, com 17%. Dilma mal atinge os 10% e o presidente interino, Michel Temer, segundo a pesquisa mais recente, tem uma taxa de aprovação de 13%.
Lula – uma figura profundamente controversa – também tem a maior taxa de rejeição dentre todos os políticos, mas segue sendo a principal esperança do Partido dos Trabalhadores. Muitos esperam que ele concorra e torne a ganhar. Ele diz que a decisão será do partido.
“Eu gostaria que outra pessoa concorresse. Eu saí com 87% de taxa de aprovação. Eu fui o melhor presidente da história do Brasil. É quase missão impossível tentar repetir esse desempenho. Eu teria que competir comigo mesmo.”
A decisão também será dos juízes. Lula é o principal alvo da investigação Lava Jato sobre corrupção na empresa petrolífera estatal Petrobras. Os promotores descobriram inúmeras evidências de que diretores da Petrobras e de outras empresas estatais pagavam preços superfaturados a fornecedores em troca de propina e doações para campanhas de políticos e de partidos da coalizão de governo.
Os simpatizantes de Lula argumentam que essa prática comum, embora eticamente indecorosa, não era ilegal, acrescentando que ela antecede o Partido dos Trabalhadores e se aplica a todos os outros partidos e também a negócios do setor privado. Já os críticos dizem que com Lula a corrupção foi sistematizada e elevada a novos patamares.
Há uma razão para isso. Ao contrário da direita, o Partido dos Trabalhadores não podia contar com o setor privado para lhe fornecer o enorme financiamento de campanha necessário para vencer uma eleição e comprar apoio no Congresso. O melhor que se pode dizer disso é que era corrupção por razões ideológicas, não pessoais. O pior é que isso vai frontalmente contra a promessa do partido de limpar a política. Em vez disso, o Partido dos Trabalhadores foi tragado pelo atoleiro.
Lula alega que a questão é meramente de financiamento de campanha e que poderia ser resolvida por meio de uma reforma.
“Por que eles não investigam como todos os outros partidos políticos arrecadam fundos?” diz o ex-presidente. “Da maneira que tem sido feito, a gente fica com a impressão de que todo o dinheiro do PT [Partido dos Trabalhadores] é sujo e todo o dinheiro do PSDB [o direitista Partido da Social Democracia Brasileira] é limpo.”
Mas a despeito da alegação de dois pesos e duas medidas, Lula– como ex-dirigente do país e do partido que se beneficiou politicamente desse sistema – não deveria ser responsabilizado pela corrupção endêmica que enganou o povo e o roubou de bilhões de reais? Essa é a acusação feita pelos promotores, que alegam que Lula era o cérebro do esquema ilegal da Petrobras.
O ex-presidente insiste em que isso se baseia em uma premissa errônea.
“Há a teoria de que ‘o chefe tem que saber’ ou de que somos culpados de incompetência [por não saber]. Mas não há crime,” ele alega.
Essa não é a única ameaça representada pelos investigadores. O caso mais avançado contra ele é de que ele teria obstruído a justiça e iniciado uma tentativa de suborno de uma potencial testemunha contra ele. O delator Amaral disse ao Guardianter deposto que Lula lhe pediu que “ajudasse” um ex-diretor da Petrobras, Nestor Cerveró, preso ano passado. O que, de início, levou a pagamentos à família do homem detido e, depois, a discussões de como tirá-lo do país por avião ou barco. Lula diz que Amaral está mentindo. “Ele construiu uma narrativa fantasiosa para se ajudar,” diz, argumentando que o uso de prisões preventivas pelo juiz para conseguir delações premiadas leva necessariamente à produção de depoimentos falsos.
Diversos casos estão agora nas mãos de Sergio Moro, um juiz de Curitiba que se tornou uma celebridade nacional graças à sua determinação em prender pessoas ricas e poderosas que antes gozavam de impunidade. Moro tem a reputação de trabalhar rápido e de ignorar reputações. Muitos dos familiares e amigos de Lula temem que Moro logo levará o ex-presidente a juízo.
Lula alega que encara essa possibilidade com equanimidade porque acredita no sistema judiciário brasileiro.
“Não há ninguém no Brasil mais tranquilo do que eu”, diz. “Se eu for a julgamento, nós vamos ficar sabendo se (as alegações) são verdadeiras ou não.”
Aos 70 anos de idade, o fundador do Partido dos Trabalhadores brasileiro pode julgar ter conquistado o direito de ser otimista. Ele já enfrentou coisas muito piores. Foi criado em uma pobreza tão abjeta que às vezes lhe faltava o que comer quando criança. Seu irmão foi preso e torturado durante a ditadura. Lutou ao lado dos mineiros britânicos em sua tentativa fracassada de enfrentar Margaret Thatcher nos anos 1980. Perdeu três eleições presidenciais antes de uma vitória histórica em 2002. Mais recentemente, submeteu-se a quimioterapia para tratamento de um câncer na garganta.
Apesar da Espada de Dâmocles judicial pendendo sobre sua cabeça, Lula acredita ter assegurado um lugar na história. “As grandes realizações dos últimos 13 anos não serão perdidas quer eu seja julgado ou não,” diz. “Não planejo mudar o que eu sou. Eu fui o melhor [presidente] de todos os tempos.”
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