O encontro de Lula com intelectuais mineiros, por Rudá Ricci

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Por Rudá Ricci*

Lula esteve na região metropolitana de Belo Horizonte para participar de alguns encontros e atos do MST e MAB, este último, encerrando o seminário internacional sobre o modelo de mineração adotado no Brasil. Este seminário compôs a programação da Marcha dos Atingidos que marcou o primeiro ano do crime socioambiental da Vale em Brumadinho.

Lula decidiu ampliar sua agenda. Participou de uma reunião com dirigentes partidários no hotel onde esteve hospedado em Belo Horizonte e, ontem pela manhã, durante mais de três horas, se reuniu com intelectuais (ao redor de 50) mineiros. Fomos informados que Lula deseja se reunir periodicamente com intelectuais e, em outro encontro, com ativistas da área cultural de diversas capitais brasileiras.

Tive o privilégio de ser um dos convidados para este encontro com intelectuais. Fomos recepcionados por Márcio Pochmann, que preside a Fundação Perseu Abramo, e Luiz Dulci. A metodologia foi bem objetiva: Lula queria ouvir ponderações e leituras da realidade brasileira e, ao final, faria alguns comentários.

Como se sabe, intelectual gosta de falar. Faz longas digressões para justificar e fundamentar uma opinião. Faz parte da etiqueta profissional: o fundamento que faz sua opinião ir além do mero palpite. No encontro com Lula não foi diferente. O que fez com que um pouco mais da metade conseguisse expressar seus pontos de vista. Foram 29 exposições. Lula ouviu como um monge: em silêncio, um olhar reflexivo que, em algumas vezes, cheguei a pensar que estava em outra dimensão. Ao final, percebi meu engano: sua fala costurava os 29 comentários. Não se trata de um ouvinte inexperiente ou incauto e eu deveria ter imaginado seu autocontrole. Recordei da época que coordenei a montagem do seu plano de governo na questão agrária, em 1989. Lula ouvia e, de repente, fazia perguntas inusitadas sobre um aspecto, focando em algo que teria um vinculo direto com a capacidade de gestão (como o caso de querer saber em quantas safras colhidas o valor do ICMS correspondente poderia pagar os custos da reforma agrária num determinado território).

O encontro foi reservado e, por este motivo, não citarei os nomes dos participantes. Farei um apanhado das diversas falas, agregando temas recorrentes.

Seria possível dividir os temas em quatro grandes eixos: educação, projeto de desenvolvimento, impacto e enfrentamento das fake News e desafios e pautas a serem enfrentadas. Também foram apresentadas reflexões sobre os desafios da esquerda brasileira, articulando com a radical mudança de organização social pela qual passamos neste início de século: algo como “todo o processo de vida social do século XX está se desfazendo e é preciso repensar todo diagnóstico e projeto estratégico”.

O diagnóstico da realidade brasileira não é simples. Houve quem destacasse dados de pesquisas recentes em que se verifica que de 50 mil pessoas que compunham um painel (uma base de pessoas que são consultados periodicamente através de enquetes online) em 2019, 43% afirmaram acreditar em fake News disseminadas, mesmo depois do desmentido formal e amplamente divulgado. A fake News não está no campo da razão, vários comentaram, mas da emoção e da ideologia. Este foi um tema que reapareceu em várias falas. Discutiu-se como o combate às fake News se relaciona com uma forte afetividade entre quem dissemina e quem recebe, envolvendo famílias, amigos e igrejas.

Outras pesquisas foram citadas, como a que indicou, recentemente, que 35% dos mineiros entrevistados se dizem lulistas (ou apoiadores do ideário lulista) e 28% bolsonaristas. Nem todos presentes concordaram com esta realidade ou que ela seja definitiva.

Também foram citadas pesquisas recentes, como a patrocinada pela Central Única de Favelas, que indica certa mansidão popular: a maioria dos moradores de favelas brasileiras se apresenta otimista em relação ao seu futuro e que as melhorias previstas se darão exclusivamente por seu esforço pessoal. Ou a série histórica construída por pesquisa patrocinada pelo CDL BH que revelou que a maioria dos belorizontinos acredita que o governo Zema vai mal e que a situação econômica deve piorar, embora acreditem que se trate de um governador esforçado e bem-intencionado. Mais uma vez, a emoção e uma certa fé cega se sobrepondo à razão.

Houve falas mais agudas, sugerindo que o diagnóstico da derrota de 2018 ainda não foi feito e que seria preciso discutir não apenas a ofensiva de extrema-direita e direita, mas também os erros cometidos. Lula confirmaria, mais tarde, esta necessidade, embora reforçasse como a construção do discurso de direita foi uma montagem que evoluiu nos últimos dez anos.
Uma fala que convergiu com esta crítica foi a de um economista que criticou a forma como a esquerda conduz o debate sobre modelo de desenvolvimento. Em sua leitura, se a agenda social (em especial, educacional), de renda e geração de trabalho fica nas mãos de dirigentes e intelectuais de esquerda, a agenda de desenvolvimento e investimentos invariavelmente cai nas mãos do empresariado ou assessores e formuladores que poucas afinidades têm com o ideário de esquerda.

Houve uma série de intervenções relacionadas à agenda pública educacional. Educadores formavam o maior bloco entre os presentes. Um dos destaques foi a política educacional para a infância. Outra, para a educação universitária. Uma fala contundente destacou que talvez seja a hora de repensar as políticas e estratégias educacionais formuladas pela esquerda porque o que está em jogo é a criminalização dos movimentos sociais, ou seja, lideranças sociais e grandes educadores que se vinculam aos movimentos sociais. Esta fala foi ainda mais sofisticada, destacando que as próprias lideranças sociais se apresentam como lideranças pedagógicas. É neste sentido que a cultura e a educação estão sendo atacadas, sustentou, muito menos por uma substituição de projetos.

Outro tema abordado foi o diálogo com as massas populares. Muitos reforçaram que só há desenvolvimento ou política social se for para as massas. E que a esquerda ainda sente dificuldades em articular esta agenda com a questão ambiental. Foi recordado que a agenda ambiental é nitidamente de esquerda porque não interessa à direita ou empresariado. Contudo, a concepção de desenvolvimento ainda engatinha nesta direção. Um dos presentes sugeriu que, inclusive, a questão ambiental se relaciona diretamente com a miséria: destacou que as regiões mais afetadas pelo dilúvio que atingiu nos últimos dias a região metropolitana de BH foram as mais pobres e sem infraestrutura pública. Foi sugerido que a agenda do momento envolvesse a) questão ambiental; b) as diversidades (no plural); c) as mentalidades e ideologias; d) o diálogo e comunicação com o povo.

Sobre este último item, foi destacada a necessidade de se repensar a comunicação com as massas. Um Pai de Santo disse: “nós somos da feira, popular e democrática, não somos do mercado”, aludindo à certa contradição entre a cultura e identidade popular brasileira e a estranha noção de empreendedorismo (muito comentada por Lula) que se dissemina nos últimos anos. Novamente, as instituições mais vinculadas à intimidade e projetos pessoais (família e igrejas, em especial) foram muito citadas. Também foi destacada a necessidade de se abrir uma forte discussão e reaproximação com setores progressistas da classe média brasileira.

Ao final das falas, Lula fez um arremate. Dialogou com as críticas apresentadas. Reconstruiu os passos para fortalecimento da Petrobrás, a concepção estratégica de desenvolvimento pensado pelos governos petistas e o aumento das críticas, inclusive dos movimentos sociais, em certo momento do governo Dilma. Mas, focou nas dúvidas atuais e no pedido de ajuda ao grupo presente. Disse que é preciso compreender o que é trabalho nos dias de hoje. Recuperou como, nos anos 1970, se falava nas portas de fábrica usando o termo “peão”. Logo depois, passou a ser utilizado o conceito de “trabalhador”. O conceito se popularizou de tal maneira que professores passaram a se chamar de “trabalhadores da educação”, médicos se nomeavam “trabalhadores de saúde” e assim por diante. Hoje, tudo mudou e um entregador de pizza que se desloca pela cidade em dia de chuva numa bicicleta se intitula “empreendedor”. No estilo Lula de ilustrar de maneira irônica seu diagnóstico, ficava nítida sua preocupação com a mudança em curso no mundo do trabalho.

Finalizou pedindo para pensarmos três agendas: juventude, desigualdade social e soberania nacional.

Foi um primeiro encontro desta natureza. Não havia apenas petistas – embora fosse a imensa maioria – mas analistas de esquerda. Lula parecia cansado, mas continua arguto. Ao final, a tietagem foi explícita. Após a foto protocolar com todos presentes com Lula, um cerco ao ex-presidente multiplicando selfies transformou o ambiente num fim de feira. Lula, atento, deve ter registrado que grande parte dos presentes era vinculado à educação. Não titubeou: em meio aos pedidos de selfie, gritou: “agora, foto somente com o pessoal da educação”.

E lá se foi para um canto sob aplausos da maioria… de educadores.

*Rudá Ricci é sociólogo, mestre em ciências políticas e doutor em ciências sociais