Daqui a pouco mais de duas semanas, o Instituto Lula, a União Africana e a FAO realizarão em Adis Abeba, capital da Etiópia, o encontro de alto nível “Novas abordagens unificadas para erradicar a fome na África”. O objetivo é reunir chefes de estado, especialistas e acadêmicos e representantes de instituições africanas e mundiais para debater novas formas de acabar com a fome no continente.
A engenheira agrônoma Maya Takagi, pesquisadora da Embrapa, foi a representante no Brasil na reunião preparatória para o evento, também realizado na capital etíope. Maya apresentou a experiência brasileira da construção e implantação da política de segurança alimentar e nutricional e combate à fome iniciada com o Programa Fome Zero, criada no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a situação atual a partir do governo Dilma Rousseff.Além do Brasil, a reunião teve apresentações de dois países não africanos – China e Vietnã – que também compartilharam suas políticas exitosas de segurança alimentar e nutricional, e de delegações africanas de Angola, Camarões, Etiópia, Níger, Maláui, Sudão do Sul e Ruanda. No encontro estavam presentes representantes das Nações Unidas, em especial da FAO e do PMA.
Leia, abaixo, entrevista com Maya Takagi.
Qual foi a reação dos países africanos em relação aos programas brasileiros de combate à miséria e à fome, como o Fome Zero, o Programa de Aquisições de Alimentos e o Pronaf?
Os países africanos têm muito interesse em conhecer o Projeto Fome Zero e o que ele trouxe em termos de resultados concretos. Foram feitas muitas perguntas, sendo que a mais recorrente foi: “como é que vocês fizeram para conseguir o dinheiro para implantar o programa?” Como os países africanos, em geral, têm sérias limitações orçamentárias, esse foi um questionamento freqüente, também endereçado à China e ao Vietnã.
Essa questão da origem dos recursos deve ser amplamente debatida no continente africano, pois a África, historicamente, sempre dependeu de recursos internacionais. É importante que os africanos vejam que países como o Brasil contaram com recursos próprios, do governo, para implantar suas políticas sociais.
Mais do que os programas em si, procurei enfatizar que o combate à fome e a miséria dependem de vontade política. Tudo começa com uma decisão política muito forte por parte do representante máximo do país, como aconteceu aqui no Brasil. Como o ex-presidente Lula costuma dizer, os governantes precisam entender que investir na erradicação da pobreza é bom para a economia.
E essas ideias foram bem recebidas?
Sim, a receptividade foi muito boa. A África vive um momento extremamente positivo, em que eles querem ser agentes do seu próprio desenvolvimento.
Quais foram as iniciativas de combate à fome na África que mais chamaram atenção?
Há vários bons exemplos para serem compartilhados. O Programa 3N, no Níger, é bem interessante. Eles têm uma estratégia de segurança alimentar articulada com investimentos na agricultura local. Também me chamou a atenção que o Sudão do Sul, um país recém-criado [nasceu em 2011, com a divisão do Sudão], já tenha um Conselho de Segurança Alimentar, com uma política definida e uma secretaria executiva. Angola, que passa por um momento de grande crescimento depois do término da guerra civil, em 2002, aposta no investimento na agricultura e na cooperação para agricultura familiar. Já o Maláui apresentou como está criando um programa de proteção social concomitantemente com o desenvolvimento da agricultura.
O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) está sendo implantado em cinco países africanos: Maláui, Moçambique, Etiópia, Níger e Senegal. Em que estágio eles estão em cada país?
O Brasil tem vários projetos de cooperação com a África, mas o mais inovador, a meu ver, é o PAA África, que eu tive a oportunidade de acompanhar enquanto estava no MDS.
Ele começou a ser implantado em 2011 nos cinco países mencionados. A ideia do PAA é que o governo compre alimentos de pequenos produtores, sem nenhum intermediário, para favorecer a agricultura de pequena escala – e esse passo já está em operação em escala piloto. Mas a estratégia é sempre associar o PAA a outros programas, como, por exemplo, o de alimentação escolar. Recentemente, foi realizada uma reunião de trabalho presencial no Senegal para fazer uma avaliação da implantação do PAA África. Avaliou-se muito positivamente os primeiros resultados e falou-se da necessidade de se partir para a implantação de programas de compra local a partir de programas alimentares já existentes nos países. Há países que começam a trabalhar nessa direção.
Os recursos para a compra de alimentos são locais ou externos?
O programa é uma parceria entre o Brasil, a FAO, o Programa Mundial de Alimentação (PMA) e o DFID [órgão do governo inglês responsável pela cooperação internacional]. Por enquanto, a aquisição de alimentos é feita com recursos dos parceiros. Mas há uma grande novidade na forma como o alimento é comprado. Em geral, o PMA adquire produtos alimentares dos países desenvolvidos ou em desenvolvimento e destina a países em situação de emergência. No caso destes projetos do Maláui, Moçambique, Etiópia, Níger e Senegal, a compra é feita diretamente dos pequenos agricultores ou de organizações locais, o que, alem de gerar renda, amplia a capacidade logística e a experiências locais. Agora estamos trabalhando de forma que os países possam comprar os alimentos com recursos próprios. O Maláui, por exemplo, já tem condições de fazer isso.
Então a intenção é criar as condições para que o próprio país continue financiando essa compra de alimentos de produtores locais, sem depender de recursos externos.
Exatamente. Esse é o diferencial do projeto e, de maneira mais ampla, da cooperação brasileira, pois tem um componente de desenvolvimento institucional. A proposta é deixar nos países a semente de um projeto que tenha continuidade e ganhe escala, com recursos do próprio país. Nós continuamos dando apoio técnico, mas o sucesso do projeto vai depender de cada governo.
E quando essa transição ocorre? Existe uma meta temporal?
Não. Na verdade o PAA África é de curta duração. São dois anos e meio de implantação e existe a possibilidade de implantar uma segunda etapa que pode durar um período de tempo semelhante. Exatamente para não se perder os avanços que já foram feitos.
Há outros países africanos interessados em implantar programas semelhantes?
As demandas são muitas e muito variadas. Durante o encontro, o representante de Angola deixou bem claro que recuperação econômica a partir da agricultura familiar é uma prioridade definida pelo país e que há interesse em ter colaboração com o Brasil. Também há interesse dos países africanos por conhecer os programas de apoio da agricultura familiar brasileira, que inclui não apenas o PAA, mas também outros, como o Pronaf. Há países que estão tentando implantar programas de transferência de renda e que querem conhecer o nosso sistema de cadastro e pagamento e o funcionamento dos bancos públicos. Nós temos o Banco do Brasil e a Caixa. Muitos desses países não têm um banco público com capilaridade, seja para crédito, seja para transferência de renda.
A discussão sobre segurança alimentar na África está muito ligada ao desenvolvimento agrícola. E o Brasil combateu a fome e a miséria com políticas sociais, não apenas com o crescimento da agricultura. O debate sobre segurança alimentar na África precisa mudar?
Como a população rural africana é grande (mais de 60% dos cerca de 1 bilhão de habitantes) e quase todos são pequenos agricultores, existe uma associação quase automática entre política agrícola e erradicação da fome. Mas essa ligação não é imediata nem automática. Vejamos o caso brasileiro. Passamos pela nossa revolução verde na década de 1970. Mas essa revolução excluiu um conjunto grande da população rural e resultou num processo migratório rápido para áreas urbanas. Nossa agricultura se desenvolveu e hoje nos tornamos uma potência agrícola em um país urbano. No entanto, não foi um processo inclusivo no sentido em que os países africanos estão buscando hoje.
Por isso, é importante que os governos africanos busquem desenvolver o setor agrícola, mas também criem formas de inserir sua população nessas políticas. Combater a fome exige uma estratégia que articula produção, comercialização, abastecimento e consumo. É essencial que vários setores do governo e da sociedade estejam envolvidos na definição das prioridades.
O grande desafio dos países africanos é como desenvolver a agricultura e a inclusão social – que nós fizemos separadamente – de forma integrada. Acredito que promover articulação da política agrícola com a política de proteção social é um debate central para o desenvolvimento africano.