“Todo projeto de poder deve saber considerar o ‘outro'”, diz pesquisador Beluce Bellucci sobre relação com a África

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O continente africano sempre teve importância especial para o Partido dos Trabalhadores. Mas foi somente após o início da administração Lula, com a expansão das relações diplomáticas, que o PT acentuou práticas com o continente para além das definições de princípios. Depois de realizar seminários e palestras sobre esse tema, o partido lançou agora uma coleção específica sobre a África. Um dos cadernos de apresentação do tema, chamado “Por que África?”, editado por de Beluce Bellucci e Luiz Carlos Fabbri.

O instituto Lula conversou com Beluce Bellucci, doutor em história econômica. Belucci conta como começaram as relações do partido com o continente africano, essencialmente movidas pelo movimento negro e por brasileiros que retornaram ao país após um período de exílio forçado pela ditadura. Ele também expõe um pouco da história dessas relações como o governo Lula ajudou a mudar tudo isso.
Beluce Bellucci trabalha com o continente africano há quase quarenta anos. Viveu mais de uma década em Moçambique, sempre ligado a projetos de desenvolvimento. No Rio de Janeiro, foi diretor do Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Candido Mendes por mais de 15 anos, professor e coordenador da pós-graduação em história da África. É doutor em história econômica pela USP e formado em desenvolvimento econômico e social pela Sorbonne. Milita no coletivo África da Secretaria de Relações Internacionais do PT.

Leia abaixo a entrevista:

Professor, em primeiro lugar, explique um pouco a relação histórica do PT com o tema África?
Desde a sua criação no início dos anos 1980, encontramos duas vertentes que permitem analisar as relações do PT com a África. Uma diz respeito às centenas de militantes que para ele afluíram e que haviam tido experiências no continente africano na década anterior, quando exilados na época da ditadura militar aqui no Brasil. Foram experiências diversas, políticas e profissionais, em países que vinham de obter a independência, como Argélia, Moçambique, Angola, Cabo Verde e Guiné Bissau, e que eram dirigidos por partidos de esquerda condutores das lutas de libertação nacional. Esses militantes trouxeram consigo, em sua maioria, um conhecimento tanto empírico quanto teórico e atualizado do que se passava no continente africano. Suas principais contradições, suas demandas imediatas, suas dificuldades e carências, mas também seus valores e potenciais. Eram vivências que acalentavam, naquele momento, o vigor das lutas de libertação nacional dos países de expressão portuguesa, lideradas por Amilcar Cabral, Agostinho Neto e Samora Machel, presentes no imaginário dos que lutavam, no Brasil, contra a ditadura militar.

A experiência desses militantes, entretanto, foi pouco aproveitada na constituição do PT, e o partido em si, mais voltado para as questões internas e latino-americanas, articulou uma relação apenas formal com alguns partidos africanos, com destaque para o ANC da África do Sul, que chegou ao poder na década de 90 com Mandela.

A outra vertente diz respeito ao movimento negro brasileiro, que naqueles anos 1970/80 iniciava um novo impulso, e boa parte de seus militantes se aproximou ou integrou o PT. Traziam suas próprias demandas de luta contra o racismo e o preconceito, e entre elas a necessidade de se conhecer o continente africano como forma de resgatar as próprias origens, há séculos negada no Brasil. Cabe registrar que um dos pontos fundamentais desta bandeira foi institucionalizada pela lei nº. 10.639, de 09 de Janeiro de 2003, promulgada pelo Presidente Lula, que institui o estudo da história da África e da cultura afro-brasileira no ensino básico nacional, até então inexistente. Abriam-se assim novas perspectivas e possibilidades para toda a sociedade brasileira, privada que estava daqueles conhecimentos.

O governo Lula trouxe mudanças?
Com a ascensão de Lula à Presidência da República, e o sucesso de seu programa, num momento em que o continente africano vivia ainda uma de suas maiores crises, a atenção dos africanos (e não só deles, diga-se de passagem) voltaram-se para o PT de Lula. Houve uma inversão de referências. O PT se expandiu e se consolidou nas relações internacionais, por exemplo com o Foro de São Paulo. No âmbito do governo, as viagens do Presidente e a ampliação dos negócios com a África, a mudança de prioridade no Itamaraty e a abertura de novas embaixadas, novos negócios e investimentos, propiciaram ganhos fantásticos no domínio das relações raciais e no estudo do continente africano. Efetivamente, a África entrou, mais uma vez e com maior profundidade que anteriormente, na agenda internacional do Brasil. Mas mesmo assim ainda existe um déficit no relacionamento do PT, e do Brasil, com os países africanos, que deve ser superado.

Por que a situação vivida em um outro continente é realmente um tema importante para um partido político brasileiro?
Todo projeto de poder deve saber considerar o “outro”. Da xenofobia de direita, aos nacionalistas de esquerda. Os grupos internacionais (ou transnacionais) de capital conhecem bem o “outro”, onde investem. Tratando-se de um partido de esquerda, como o PT, que se insere e pretende compreender a conjuntura do século 21 e o processo de integração econômico, político, social e cultural, assim como a transição societal que vivemos, a necessidade do conhecimento, não apenas do continente africano mas de todo continente e de cada país em particular, é tarefa fundamental, complexa, difícil, árdua e cara, mas imprescindível de ser realizada.

Trata-se, pois, de buscar o conhecimento e relacionamento com todos os povos em geral, e em particular aqueles que nos últimos séculos foram desconsiderados por serem “pobres”, “subdesenvolvidos”, “que nada tinham a contribuir”, quando não eram “de negros”, “fornecedores de mão de obra”, “amarelos” etc, e sobre os quais nós brasileiros temos enorme desconhecimento.

E nesse campo, também houve mudanças com o governo Lula?
Ao que tudo indica, a atenção quase que exclusiva ao circuito Roma-Paris-Londres-Nova Iorque no Itamaraty vem sendo rompida. Nas universidades brasileiras começam a florescer núcleos de estudos, e os professores do ensino básico vem sendo obrigados, por lei, a estudar. Por isso, os partidos não podem ficar alheios a esse movimento. O PT, mesmo com seu exemplo positivo até o momento, precisa aprofundar, ampliar e profissionalizar esse conhecimento, institucionalizar caminhos e apoiar ações que o consolidem. Os temas estão na ordem do dia, os parceiros nos esperam.

É nossa proximidade histórica e cultural que torna importante o estudo da África?
Não. A importância do estudo da África se dá, não porque somos um nação de maioria descendente africana, ou porque os nossos ancestrais foram escravizados e trazidos para cá. Estes foram os motivos pelos quais não nos deixaram estudar a África, já que escravos, por serem “coisas”, não podiam ter história. Independente de nossos laços históricos, o estudo da África fundamenta-se pela importância daquele continente, tanto quanto os outros vale registrar, com 1 bilhão de habitantes e 53 países, cheio de riquezas e pobrezas, belezas, contradições e mistérios.

Conhecer as complexas sociedades africanas, suas histórias, relações e conflitos, na antiguidade, na dominação colonial dos séculos 19 e 20, ou no período contemporâneo independente, são fundamentais para qualquer partido com projeto de poder e para qualquer nação que almeja consolidar e ampliar a sua inserção internacional.

Como são as relações do PT com entidades africanas?
Na minha opinião elas são, em sua maioria ainda insipientes, precárias, com exceção talvez para a estabelecida com o ANC da África do Sul. Essas relações precisam mudar de qualidade, ter mais claro a definição dos parceiros, e para isso é preciso se conhecer melhor os movimentos que lá existem. A crise na África sul-saariana, dos anos 1980 e 90, e que se repercute aos dias de hoje, produziu efeitos graves na estrutura social, econômica e política. Alguns partidos com trajetória de luta contra o colonialismo e posição de esquerda, por diversos fatores que não vêm ao caso aqui enumerar, se descaracterizaram e perderam o vínculo com movimentos e aspirações populares, tornando-se alavanca de políticas neoliberais. As mudanças do mundo nos últimos 30/40 anos influenciaram profundamente a África, seus movimentos e partidos. A busca de relações passa portanto por conhecimentos prévios. A grandeza da tarefa exige uma estrutura profissional voltada especificamente ao continente, de estudo e pesquisa, acompanhamento e relacionamento, ainda inexistente no PT, de forma a que as relações sejam mais orgânicas, institucionais, duradouras e constantes com partidos e movimentos políticos africanos, que estejam no governo e fora dele.

A oportunidade que os africanos oferecem ao PT, e aos partidos de esquerda em geral, são os inúmeros movimentos que lá existem capazes de mudar o sentido das coisas e o rumo da história, movimentos que estão (ou estarão em breve) em condições de organizar as massas ignoradas, para melhorar as condições de vida, no mundo globalizado. E neste domínio, tal como nas relações entre os governos, as trocas de experiências e busca de objetivos comuns faz-se premente. Essas oportunidades são bivalentes, com mão dupla. Um precisa compreender o outro para entender as suas próprias lutas, as suas próprias necessidades, reafirmar e reavaliar os seus objetivos e comprometimentos.

Quais são as oportunidades que a África apresenta ao Brasil e em que o Brasil pode ser uma oportunidade para os africanos?
Em meu entender, os africanos não esperam de nós algo distinto do que esperam de outros países. Podem até gostar mais de nós pelos laços históricos, por reconhecerem que aqui vivem parentes seus distantes. Mas laço histórico não enche barriga de ninguém. E também não esperam do Brasil apenas trocas comerciais de lucros fáceis e imediatos. Esperam, com certeza, relação não colonial, não paternalista, de confiança, sincera e duradoura, ou seja, não um namoro ocasional, mas uma relação estável, um projeto de longo prazo. E nisso, o Brasil tem ainda muito o que fazer. A formulação de uma política brasileira que envolva os aspectos internos e externos ao nosso desenvolvimento, aí incluída as relações com os povos africanos, está apenas em seu início, e houve muito progresso desde o governo Lula. Mas um partido de esquerda deve perguntar: o que se pode oferecer e o que se pode esperar de forma a beneficiar a todos os envolvidos e não apenas os detentores de capital?

Quando se fala em oportunidades, geralmente refere-se a oportunidades de ganho, de lucro. Nesse aspecto, o Brasil e os países africanos tem exatamente as mesmas coisas: minerais de interesse industrial e comercial, energia (petróleo, gás) e terra para produção agrícola alimentar, industrial ou energética. Nós temos alguma tecnologia que muitos países africanos não possuem, e eles outras que nós precisamos. Dos dois lados do Atlântico existem quantidades de homens e mulheres sem acesso à terra e que passam privação. Temos ainda contingentes de famintos, desassistidos em saúde, sem abrigo habitacional, sem escola e sem emprego. Ou seja, temos força de trabalho apta para ser explorada. Porém, essas oportunidades são para os grupos de capital, não para os partidos políticos.

Para além das relações econômicas e comerciais, existem múltiplos domínios de cooperação entre o Brasil e a África. As universidades brasileiras, por exemplo, podem cumprir um papel importante se ampliarem os programas acadêmicos, para além dos já existentes e da Unilab, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, no Ceará, não por acaso, também realizada no governo Lula. A cooperação universitária não pode ser descuidada, pois abre novos caminhos e solidifica as relações.