Fã declarado e assumido de novelas, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva passou os últimos tempos incomodado com uma situação. Na novela Pantanal, a dona de casa interpretada por Isabel Teixeira vive um relacionamento abusivo, como o de muitas mulheres no Brasil. No remake da trama de sucesso dos anos 1990, é o marido quem dá a ela o apelido de Maria Bruaca, muito pouco elogioso depois de casar-se com ela, grávida, e devastar as terras que herda do sogro. Maria atura tudo em nome do casamento, sem saber que o marido não é fiel e mantém outra família em São Paulo. Parece não haver limites para as maldades que o vilão Tenório impõe à mulher.
O ex-presidente não admite essa história de mulher ter que se sujeitar a violências para sobreviver. Não é à toa que criou tantas políticas integradas para as brasileiras, e transformou o combate à desigualdade de gênero em um pré-requisito para tudo o que o Estado fizesse. É por isso que, já em seu primeiro ano de governo, criou a Secretaria de Políticas para Mulheres, responsável por coordenar as políticas para as brasileiras.
Em 7 de agosto de 2006, Lula sancionou a Lei Maria da Penha, legislação específica para o enfrentamento à violência doméstica e familiar. O nome é inspirado na história de Maria da Penha, uma mulher que lutou por 19 anos e seis meses por justiça até finalmente ver preso o homem que tentou matá-la duas vezes, deixando-a paraplégica. Os esforços do marido para silenciá-la foram em vão, e a biofarmacêutica virou um símbolo da defesa dos direitos da mulher.
Eleita uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra as mulheres por um relatório do Banco Mundial, ligado à Organização das Nações Unidas, a Lei Maria da Penha obriga o Estado e a sociedade a protegerem as mulheres contra um tipo de violência que não distingue classe social, idade ou religião e mata todos os dias no Brasil. Ao mesmo tempo, traz avanços como a tipificação da violência psicológica e moral, a instauração de medidas protetivas de afastamento cautelar de agressores e acaba com a prática, recorrente por algum tempo no país, de tribunais aplicarem penas meramente monetárias aos réus.
Era como se o Brasil declarasse que, a partir dali, em briga de marido e mulher se meteria a colher, sim, e que isso salva vidas. Calcula-se que mais de 300 mil vidas foram salvas entre 2006 e 2014, indicam dados da Secretaria de Políticas para as Mulheres. Entre 2006 e 2015, contabiliza o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), houve uma redução de 10% na taxa de homicídios domésticos no país.
“A Lei Maria da Penha avançou em muitos sentidos, mas a principal contribuição foi, sem dúvida, estabelecer um novo paradigma, iluminar uma questão até então relegada ao espaço privado. Uma realidade cruel com as mulheres passou a ser tratada como política pública”, escreveram em artigo Jandira Feghali, relatora do texto, e a própria Maria da Penha.
Formular algo dessa magnitude só foi possível graças a um esforço coletivo da sociedade civil e do poder público, por meio da SPM, criada já no primeiro ano do governo Lula. Com status de ministério, a pasta coordenava as políticas voltadas para as brasileiras e inaugurava um novo capítulo que se completava com a instituição, em 2004, do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres.
Tinha início uma era de mais protagonismo, autonomia e possibilidades para as brasileiras. Uma virada de chave importante que seguia os passos da estratégia de governo focada em acabar com a crença de que a desigualdade era algo “natural”, como se fosse normal excluir uma parcela importante da população de acessar direitos básicos. Não é, provaram Lula e Dilma Rousseff.
Esse país precisa ser mudado. É preciso criar condições de equiparação, efetivamente, que já está na Constituição, entre mulheres e homens. As mulheres têm que ser tratadas com respeito. Nós precisamos fazer com que ela ganhe, fazendo o mesmo trabalho, igual ao homem.
Lula em entrevista à rádio Itatiaia Vale do Aço
Nos governos dos ex-presidentes do PT, as políticas para a promoção da igualdade entre homens e mulheres se institucionalizaram de forma transversal. Isso significa dizer que, em todas as áreas da atuação do Estado, havia um olhar dedicado para garantir a elas acesso a direitos, fortalecimento econômico, combate à violência e redução das desigualdades. Isso mudou a forma como o Estado olhava, cuidava e pensava as mulheres como atores políticos e foi essencial para que elas pudessem se tornar protagonistas de suas próprias histórias.
Para que isso começasse a se concretizar, Lula escalou um time de ministras com competência técnica, experiência e vontade política para fazer a diferença. Em um país que olha para as mulheres, as políticas para elas eram construídas em conjunto com elas — ao longo dos dois governos, 11 ministras trabalharam com Lula, um recorde que só seria ultrapassado por Dilma, que contou com 18 ministras em cinco anos e meio de gestão.
Do Bolsa Família ao programa de cisternas, passando pelo Luz Para Todos, o Minha Casa, Minha Vida, a Saúde, a Educação e a geração de empregos, um combinado de políticas públicas foi colocado de pé.
Como o Programa de Combate à Violência contra as Mulheres, (que implementou casas-abrigo, centros de referência, defensorias públicas e delegacias especializadas), e o próprio Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência contra as Mulheres, de 2007, cujo ponto central é a aplicação da Lei Maria da Penha, além de incluir a prevenção, a assistência e o acesso a direitos.
Já com Dilma, em 2013, um conjunto de políticas assegurou um salto conceitual e político com o Mulher Viver Sem Violência e as Casas da Mulher Brasileira, que em 2016, realizava uma média de 2,2 mil atendimentos por unidade.
Outros avanços que cabe lembrar são a tipificação do crime de feminicídio, a lei que estabelece o atendimento obrigatório integral a vítimas de violência sexual e o texto que prevê, pelo SUS, a realização de cirurgias reparadoras de sequelas e lesões causadas por atos de violência de gênero.
Encontros nacionais aconteciam a cada três ou quatro anos desde 2004 para pensar políticas com e para mulheres, mas deixaram de acontecer desde 2016, com o golpe que tirou do poder Dilma Rousseff. De lá para cá, a negligência e o descaso tomaram o lugar da inclusão.
Não chega a ser surpresa, visto que a ficha corrida do presidente inclui histórico de falas preconceituosas que se sobrepõem a seu machismo e racismo característicos. Um homem que separa as mulheres pelos atributos físicos, que determinariam se elas “merecem ou não” ser estupradas e defende, sem pudor o turismo sexual e que mulheres recebam menos caso optem por ter filhos.
Mas o problema não é só o que Bolsonaro fala, mas o que não faz. Ao contrário do que querem fazer crer sua família e apoiadores de seu projeto de reeleição, Jair fez pouco ou nada em benefício das mulheres. Ao contrário, o orçamento de combate à violência de gênero despencou ao menor patamar na gestão do atual presidente. Enquanto isso, como define o Boletim de Políticas Sociais do Ipea (Instituo de Pesquisa Econômica Aplicada), desde 2019 instituiu-se um “movimento de desmonte” de políticas públicas para as brasileiras.
Estava posta a equação que resultaria no inevitável, um aumento injustificável na violência contra a mulher. Em 2021, registrou-se um estupro a cada 10 minutos e um feminicídio a cada 7 horas, mostra o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Neste ano, só no Rio de Janeiro, a Polícia Militar atendeu em média 7 ocorrências por hora de casos de violência contra a mulher.
Agora, em meio a seus delírios eleitoreiros para forjar um apoio e um vínculo com o povo que nunca existiu, Bolsonaro tenta apagar o passado e posar como alguém que caminhou junto das mulheres. Mais uma vez, subestima o que elas vivem, pensam e sabem sobre como foi a própria vida sob essa gestão desastrosa do governo federal. Em 2022, o descaso das mulheres ao longo do mandato tem se mostrado a derradeira “fraquejada” que já cobra seu preço.
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