Brasil pode ajudar a erradicar a fome na África, afirma especialista do Programa Mundial de Alimentos da ONU

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Nos últimos anos, as políticas sociais implementadas pelo governo brasileiro vem chamando a atenção de governos de muitos países em desenvolvimento, sobretudo da África e América Latina.

Com objetivo de ser um espaço de intercâmbio das experiências brasileiras com outros países em desenvolvimento, o governo brasileiro, em parceria com o Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (PMA) criaram, no final de 2001 o Centro de Excelência Contra a Fome. Instalado em Brasília, o centro recebe delegações internacionais interessadas em conhecer as políticas sociais do Brasil para implantá-las em seus países e desenvolve projetos de cooperação técnica. Trata-se de um modelo de atuação bem diferente do PMA, que doa alimentos e recursos para regiões em situação de crise humanitária.

O Instituto Lula entrevistou Daniel Balaban, diretor do centro. Ele traçou um panorama do papel do Brasil na cooperação Sul-Sul, falou sobre os programas de cooperação técnica brasileiros já em andamento nos países africanos e refletiu sobre os principais desafios que existem para erradicar a fome no mundo.

Leia, abaixo, a entrevista.

O que é o Programa Mundial e Alimentos e o Centro de Excelência contra a fome?
O Programa Mundial de Alimentos (PMA) é a maior agência humanitária da Organização das Nações Unidas, com atendimento de cerca de 60 milhões de pessoas. Está presente em mais de 60 países onde existem conflitos armados, desastres naturais ou pessoas passando fome.

Já o Centro de Excelência Contra a Fome aqui no Brasil é uma parceria entre o PMA e o governo brasileiro. Foi criado para apoiar outros países do mundo a criarem condições de desenvolverem programas de combate à fome e à pobreza baseados na experiência brasileira adquirida nos últimos anos, como o o Programa de Merenda Escolar, o Bolsa Família e o Programa de Aquisição de Alimentos.

Em 2012, o Brasil doou 82 milhões de dólares ao Programa Alimentar de Alimentos. O país está entre os maiores colaboradores do PMA?
Atualmente, o maior contribuidor são os Estados Unidos, mas o Brasil está entre os dez países do mundo que mais colaboram com a agência. Essa contribuição é feita por meio da doação de alimentos, recursos financeiros e cooperação técnica institucional. No caso do Centro de Excelência Contra a Fome, trata-se de uma contribuição técnica. Nós usamos todo o conhecimento brasileiro pra poder ajudar os demais países a criarem programas sustentáveis de combate à fome e à pobreza.

Como funciona essa cooperação técnica?
Os países interessados em receber essa cooperação do Brasil nos enviam um comunicado através do PMA ou da Agência Brasileira de Cooperação. A partir daí, trabalhamos num termo de referência, em que o país interessado na cooperação coloca no papel quais são as áreas que ele gostaria de fortalecer em seu país e qual o tipo de apoio técnico que ele necessita do governo brasileiro e do Programa Mundial de Alimentos. Baseado nesse termo de referência, organizamos uma agenda e recebemos uma comitiva de alto nível, composta por ministros, vice-ministros, secretários de Estado e outros profissionais que tenham poder de decisão em seus países. Eles vêm ao Brasil e ficam conosco durante cerca de duas semanas. Na primeira semana, realizamos encontros com técnicos do governo brasileiro de diferentes áreas, como Ministério da Educação, da Agricultura, do Desenvolvimento Social e também empresas como a Conab e a Embrapa para que a delegação entenda como funcionam os programas brasileiros de combate à fome e à pobreza. Essas visitas são extremamente importante para que as delegações compreendam que, no Brasil, os programas sociais dependem de uma ação conjunta de vários ministérios.

Depois dos encontros, organizamos missões ao campo para que a comitiva veja, in loco, como funciona o que eles aprenderam na teoria. Nessas viagens, os especialistas conversam com agricultores familiares, diretores de escolas, prefeitos, membros da comunidade civil que participam dos programas e com beneficiários do Bolsa Família. O interessante é que a comitiva tem oportunidade de ouvir, da boca de quem está se beneficiando e implantando os programas, como as coisas funcionam. E eles nem sempre ouvem só elogios.

Após as visitas de campo, trabalhamos juntos num plano de ação. De volta aos seus países, essa comitiva discute com governos e sociedade civil o que eles viram no Brasil. Quando o debate está suficientemente maduro, fazemos o percurso contrário: organizamos uma missão de técnicos brasileiros para o país interessado, em que o plano de ação é discutido com ministérios, secretarias e com a sociedade civil. E, então, ao final dessas discussões, o governo já tem apoio e envolvimento da sociedade civil para aprovar e implantar as políticas.

Já existem projetos em fase de execução ou que já foram implantados? Quais são e em que países?
Moçambique, pela primeira vez, criou e aprovou um programa nacional de alimentação escolar desenvolvido pelo Governo e que está começando a ser colocado em ação. Nós estamos muito satisfeitos, pois o Centro de Excelência Contra a Fome ajudou na concepção.

Em Ruanda, já fizemos reuniões de trabalho lá, discutimos com o governo e agora eles estão em fase final de adaptação dos programas. Na Guiné, o trabalho também já está em fase final. Agora estamos preparando workshops no Níger e também no Malauí.

Levando em conta que o Centro de Excelência contra a Fome está trabalhando apenas há um ano e meio, são resultados bem animadores. Desde que começamos nossas atividades, em dezembro de 2011, já recebemos comitivas de 22 países. E não são apenas países de baixo desenvolvimento, mas também alguns de renda média, como Filipinas e México. A Rússia também já está programada pra vir. Ou seja: as nações em desenvolvimento também estão querendo entender como o Brasil desenvolveu suas políticas de combate à fome e à pobreza nos últimos anos.

Durante muitas décadas, o Brasil foi recebedor de cooperação internacional. Nos últimos anos, nos tornamos também um grande doador internacional, com a prioridade nas relações Sul-Sul. Por que essa mudança e o que se espera nos próximos anos?
É interessante esse processo. Até pouco tempo atrás, recebíamos ajuda internacional do Banco Mundial e do FMI e também das agências internacionais e hoje nós estamos cooperando com eles. Essa cooperação internacional é feita por todos os grandes países desenvolvidos do mundo.

O Brasil começa a ser cada vez mais respeitado no cenário internacional por aquilo que ele pode ajudar, por tentar criar condições para que nações mais pobres não dependam, no futuro, da ajuda externa. Não adianta apenas exigirmos uma posição de respeito no cenário internacional se nós não mostrarmos que estamos aptos e prontos a ajudar quem precisa.

Hoje, o Brasil também ajuda com alimentos, porque existem países que, infelizmente, ainda precisam de doação de comida e a fome não pode esperar. Porém, junto com a doação de alimentos, estamos também doando capacitação, de forma que os países criem suas próprias capacidades e possam desenvolver suas estruturas internas para que não dependam mais da doação. O Centro de Excelência Contra a Fome tem exatamente esse papel.

Por que a chamada cooperação Sul-Sul é importante?
Porque é  uma cooperação de igual pra igual. Não temos nenhum tipo de condicionalidade. Quando apoiamos um país, a única condição que pedimos em troca é o comprometimento político. Nós não pedimos que eles sigam as nossas normas e tampouco temos receitas prontas. Estamos aqui para apoiar os países que precisam de cooperação, mas quem vai criar o futuro de suas nações são eles próprios. E, dentro desse tipo de cooperação mais horizontal, o Brasil é um dos maiores expoentes. Sabemos como receber comitivas internacionais, como respeitar essas pessoas, os seus pensamentos, as suas vontades e ajudá-los naquilo que eles acreditam ser importante ao seu próprio futuro.

Hoje, o mundo produz alimentos suficientes para alimentar toda a humanidade. Entretanto, existem quase 1 bilhão de pessoas passando fome – 239 milhões na África. Recentemente, você declarou que estamos perdendo o jogo no combate à insegurança alimentar mundial. Por quê?
Acho que os países ricos mundo e as agências internacionais se preocuparam muito em levar soluções prontas aos países necessitados. Ou seja, alimentar as pessoas, entregar-lhes comida. Há relativamente pouca preocupação em criar as bases do desenvolvimento. Não adianta chegar a um país em que a população tem fome e apenas doar alimentos. As pessoas vão receber a comida, saciar a fome e amanhã estarão com fome de novo. Porque ninguém ensinou a elas como produzir seu próprio alimento, como não depender mais de ajuda externa.

Acho que é essa mudança de paradigma que os países africanos estão querendo. Recebo muitas comitivas de países africanos, ministros de Estado, até mesmo presidentes e eles estão percebendo que pouco adianta receber o recurso financeiro sem desenvolver a capacidade estrutural para implantar políticas socais efetivas e duradouras.

Os países africanos estão sedentos por cooperação técnica, por entender como funcionam nossas políticas sociais, por aprender como fazer com que eles não precisem mais depender de ajuda externa. Até as décadas de 1960 e 1970, os países africanos eram exportadores de alimentos. Hoje, eles não conseguem produzir a comida de que necessitam.

Quais são as regiões do mundo atualmente mais vulneráveis na questão da segurança alimentar?
O continente com mais pessoas passando fome é o asiático, sobretudo em parte da China, Índia e Bangladesh, onde existe há uma alta concentração populacional.

O segundo é a região conhecida como Chifre da África, onde estão a Somália, a Etiópia, o Djibouti e a Eritreia. Lá, principalmente devido aos conflitos armados, 12 milhões de pessoas vivem uma situação de insegurança alimentar. Ainda na África, a região do Sael, uma extensa área abaixo do deserto do Saara, existem 19 milhões de pessoas passando fome, sobretudo devido aos efeitos da seca.

A situação ainda é preocupante em algumas regiões da América Latina e Caribe, sobretudo no Haiti. Porém, nos últimos anos, a América Latina vem fazendo grandes progressos na questão do combate à fome.

O Instituto Lula, a FAO e a União Africana estão organizando um encontro de alto nível com chefes de estados e especialistas africanos e internacionais para discutir novas abordagens para erradicar a fome no continente africano. Como o Brasil pode colaborar para combater a insegurança alimentar na África?

Um evento como esse é extremamente importante. Existem, hoje, na África, governos comprometidos, organizações atuantes e muito dinheiro de doadores internacionais. Mas falta coordenação, falta que todos os agentes discutam, de maneira integrada, quais são os melhores caminhos pra desenvolver essas políticas nos países africanos. E um dos fatores preponderantes é entender que não existe receita pronta, que é preciso respeitar as regras, a cultura e economia de cada país.

Acho que os países da África estão num momento político muito propício para investir em programas sociais, em agricultura de qualidade, em ações de combate à fome e à pobreza. E nada melhor do que mostrar uma experiência do que aconteceu no Brasil nos últimos anos, no qual 40 milhões de pessoas saíram da extrema pobreza.

Acho que ninguém melhor do que o Brasil, via Instituto Lula, para tomar  a liderança desse processo, para reunir União Africana, a FAO, o Programa Mundial de Alimentos e todas as outras organizações internacionais para que se encontrem saídas democráticas que garantam que os países africanos finalmente consigam combater a fome e a pobreza de maneira efetiva e duradoura.